por uma política da vida vivível

por uma política da vida vivível

bárbara lopes

 

Comida, filhos, casa. Audiências, comissões, leis, tribuna. São dois mundos interligados, mas com um muro que os separa.

Quando se fala em política, a associação mais imediata é com o mundo de lá. São os espaços de decisão governamental e econômica, majoritariamente ocupado por homens. Para existir, depende do trabalho invisível de uma multidão de mulheres (e também de homens) que preparam sua comida, limpam suas casas, lavam suas roupas, cuidam de suas famílias. No mundo de cá, essas mulheres precisam inventar estratégias de sobrevivência, para dar conta de si, dos seus e daqueles do mundo de lá. Essas estratégias também são política, mas dificilmente são vistas como tal.

 

 

No território comum das ocupações urbanas de moradia, as mulheres começaram a se reconhecer, a identificar, nomear e compartilhar suas práticas. Fazer uma horta para produzir alimentos para a família e para ajudar na renda; sustentar redes que compartilhem o cuidado com as crianças; apoiar umas às outras na lida com casos de violência doméstica. Mas não só: manter viva a sabedoria das ervas medicinais, da cultura do povo negro, as festas e a memória dos que vieram antes. E, além disso, fazer o enfrentamento necessário para se opor às frequentes ameaças de despejo. São as práticas que tornam a vida vivível, mote elaborado pelo Coletivo Etinerancias/Rede Comadre, que possibilitou o encontro realizado no dia 25 de setembro em Belo Horizonte, reunindo mulheres das ocupações Dandara, Rosa Leão, Vitória, Vicentão, Anita, Tomás Balduino e Guarani-Kaiowá. “ Aqui estão mulheres que constroem diversas cidades, essa é memória do mundo que a gente faz, e nos reconhecermos. É estratégico para a vinculação com a politica que há nessas práticas” comenta Débora Del Guerra, que integra  o coletivo.

 

 

 

São experiências que vêm de longe, das aldeias e quilombos até as comunidades rurais e periferias urbanas. Mas existe algo novo nessa história: uma fresta no muro que separa essas experiências da política institucional. Junto às mulheres das ocupações, estavam as vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella, que compõem a Gabinetona com Bella Gonçalves. A experiência das Muitas, que levou Áurea a ser a vereadora mais votada da cidade, se repete este ano. Ela é candidata a deputada federal. No encontro, estavam ainda as candidatas estaduais Andréia de Jesus e Kênia Ribeiro.

As três candidatas trazem um sentido muito profundo à ideia de representação política. Andréia expressou isso: “nós estamos hoje desafiando ocupar espaços institucionais, ocupar espaços de decisão. Onde não vão falar por nós, mas nós vamos estar lá falando juntas”. Áurea vem da educação popular, do hip hop e dos movimentos juvenis de periferia. Andréia trabalhou como doméstica, atuou nas Comunidades Eclesiais de Base e na Pastoral Carcerária e tornou-se advogada. Kênia é uma liderança da Ocupação Vicentão e do movimento de camelôs.

 

 

A chegada dessas mulheres negras à política institucional não significa uma saída do mundo da política do cotidiano, mas a incorporação dessa esfera. Provoca um abalo no funcionamento das institucionalidades. “Graças à nossa força é que temos a possibilidade de ter um país em que podemos viver. Só não está pior porque a mulherada mostra que tem outro jeito de viver, de cuidar das pessoas, das crianças, de nós mesmas, das plantas, dos animais, da terra. A política de lavar vasilha, fazer uma horta, que é tão desvalorizada, vai salvar a gente do mal pior. É tirando a cerca, a competição, os muros que colocam entre nós. A Gabinetona é uma ocupação, porque não queremos uma propriedade”, definiu Áurea. Bella, que também é militante das Brigadas Populares, completa: “A Gabinetona é uma experiência de aprendizado, com indígenas, pessoas trans, camelôs, com a juventude negra. Estamos construindo uma forma diferente de fazer um mandato. A Gabinetona transforma a si mesma para transformar a sociedade”.

O encontro se apoiou em três dimensões fundamentais dessa outra política: o território, o corpo e a memória. Uma política que não paira abstrata, mas que se materializa em espaços, sujeitos e tempos. Uma de suas expressões é a transformação física que a experiência das ocupações causa nas mulheres, visível na superação de quadros de depressão e paralisia. “A gente se cura na coletividade. A ocupação nos cura. Tem de tudo, mas é um grande local de aprendizado. Sou preta, pobre, sapatão e favelada. Minha vida toda é de revolução, sou uma revolução em pessoa. Juntas nós vamos dominar a política e fazer outra”, anunciou Kênia.

 

 

No meio da costura das conversas, a antropóloga Alana Moraes lembrou que, para as mulheres indígenas, duas chaves são importantes: a festa e a guerra. No encontro na ZAP 18 – espaço cultural e educativo no bairro Santa Terezinha – os duros enfrentamentos que passamos não foram esquecidos. A dor que se vive no dia a dia também se vive na política: de um lado, o avanço do conservadorismo e do fascismo expresso na candidatura de Bolsonaro; de outro, o assassinato de Marielle Franco, que também representava essa ocupação da política. “Nosso desafio é grande, mas a morte da Marielle e de tantas companheiras não vai nos calar”, desabafou Vagna, moradora da Ocupação Dandara. “Quando a gente fala que basta, isso incomoda e vem uma reação para tentar nos silenciar. Foi o que aconteceu com a Marielle. São ataques contra nossos corpos individuais e coletivos”, ressaltou Áurea.

Existe a guerra, mas também existe a festa. A noite foi também de alegria, de troca de olhares e abraços, de mãos dadas e de poesia. Como lembrou Natalia Alves: “A gente luta por causas perdidas, mas por isso mesmo sempre saímos vencedoras”.

 

Fotos por Zi Reis