É panacéia, a gente tinha em casa

 

É panacéia, a gente tinha em casa

por Débora Del Guerra e Livia Ascava

 

“É Panaceia, a gente tinha em casa. Minha mãe usava muito”, Andreia de Jesus reconhecia a larga e aveludada folha em suas mãos – umas das muitas plantas que Tantinha colheu de seu quintal e distribuiu aos participantes na atividade de abertura do encontro, com o convite para que, de olhos fechados, fizessem o reconhecimento, manejo e escuta. Era ainda um convite para que os corpos-almas-espíritos que chegavam ali das ocupações, dos pontos de resistência de agricultura urbana, da academia, dos movimentos populares, das campanhas e institucionalidades políticas pudessem se encaixar. Um a um e uns aos outros.

Há duas semanas das eleições, as candidatxs Áurea Carolina, Andreia de Jesus e Rafa Barros participaram do encontro para partilha e bença com “Tantinha e mulheres da agricultura urbana”. Um encontro íntimo, também pela quantidade de pessoas (cerca de 25) mas sobretudo porque tinha história. Era um reencontro de pessoas, de pessoas com sua memória, de pessoas com a terra, com as plantas, abraçado pelas montanhas das Minas Gerais e protegido pela energia da terra e das plantas. Um encontro descolonizado em sua intenção, formato e conteúdo. Ali no Quintal da casa de acolhimento e cura de Tantinha, em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte.

Na mesma semana, em que parte desse grupo havia participado de um encontro de mulheres de ocupações urbanas é importante desvelar a potência de um fazer campanha, num ritmo que se permite desacelerar dentro dos acelerados 40 dias. De um fazer campanha comprometido com manter vivo no corpo o registro que será levado para a institucionalidade. Comprometido com lembrança de onde principiou o desejo de poder, de saber governar: do saber habitar, cuidar, criar e gerar vida.

As samambaias da mãe de Áurea Carolina, que foram fonte de sustento para a sua família quando o desemprego abriu a garagem da casa para o comércio das plantas que eram cultivadas na casa estavam tão presentes como a imagem de Marielle Franco. Andreia de Jesus lembrava do seu necessário diploma de advogada para ser legitimada e tecer disputas num espaço patriarcal, sem esquecer que o coração de seu conhecimento não pulsava na academia e sim nas experiências cotidianas que seu corpo de mulher, negra, periférica guardavam e continuam produzindo. Rafa Barros se lembrou de um antigo território de plantar que frequentava em sua infância, no qual as plantas se organizavam subversivamente, umas sobre as outras. “Assim seguiremos nós, como territórios de cultivo indisciplinados e por isso potentes”, imaginava.

Entre uma fala e outra, todos paravam para escutar a conversa entre Tantinha e Raquel, uma mulher de 76 anos que ocupou um terreno ao lado de seu prédio onde mantém uma horta urbana. Era sempre uma encruzilhada, optar por manter a conversa entre os participantes ou entregar-se àquela conversa entre duas mestras. No partilhar de sua história, Tantinha se recorda de um acontecimento ensinador. Em dado momento, suas crianças precisavam de farinha enriquecida e a fila de espera para conseguir o alimento era incompatível com a necessidade de uma mãe ver seus filhos saudáveis. Foi lá, aprendeu a fazer a tal farinha e compartilhou a receita com as demais mães da fila de espera.

O que essa história da farinha nos conta é sobre nossa capacidade de cuidar, manter e criar a vida, em comunidade. Autogestão. Mas também nos lembra que há governos que facilitam ou obstruem com maior intensidade que as comunidades se auto organizem, reforçava Debora Antoniazi Del Guerra, articuladora do encontro.

“Estamos aqui defendendo e sobretudo praticando uma política do cultivo. do cultivo da vida. do cuidado e da auto-gestão. Uma política das plantas, ouvindo-as. reverberando sua beleza. Hortas nas perifas, nas ocupações, nos centros, nas roças. Essa é a esperança concreta de novas vidas. Junho de 2013 foi muito forte em BH (protestos, viaduto, assembleia horizontal, ocupações). Reforçou um cotidiano já rico de criações-lutas, que bebe das tradições e das subversões. Uma não vive sem a outra. Nessas tensões se criam os caminhos de libertação”, falava o professor de ciência política da USP, Jean Tible antes da bença de Tantinha a cada um dos presentes.

A aventura da percepção de um conhecimento tão ancestral e tão invisibilizado, inaudível no padrão hegemônico do viver patriarcal é a aventura da descolonização. É a resistência da terra, que independente dos governos, governantes dos delírios de dominação da sociedade patriarcal se mantém potente. Uma resistência que corpos-árvores, enraizados nesse saber estão levando aos ambientes institucionais.