por Frederico Lyra de Carvalho
Não tem sido raro ir na feira comprar tomate e cebola e, seja no caminho de ida ou de volta, ser escoltado até quase a porta de casa. Ou ainda, na hora de pegar trem para uma outra cidade qualquer, ter de passar no meio de uma patrulha na estação. Ou ainda me ver obrigado a dividir o trajeto do ônibus com nove soldados todos juntos de pé. Como estou quase sempre de mochila nas costas, vai que sou confundido com um homem-bomba? Desde os atentados do 13 de novembro de 2015, patrulhas do exército francês invadiram as ruas de Paris e das outras cidades importantes da França. Se antes dos atentados elas se limitavam a vigiar os lugares mais turísticos, hoje as patrulhas de quatro a nove soldados proliferam pelos quatro cantos da cidade. A presença de soldados por todos os lados já pode ser incluída na nova normalidade do modo de vida parisiense. Se antes era essencialmente “pra gringo ver”, agora é para todo mundo sentir esta presença e não esquecer que eles estão lá. Permanentemente? Parece ser este o caso. É difícil imaginá-los saindo de um dia para o outro da rua como se nada houvesse acontecido. E dada a reestruturação profunda no Estado e modo de vida francês que está sendo levada a cabo pelo governo de Emmanuel Macron, o mais provável é piorar. Não foi com ele que esse movimento se iniciou, mas ele tende a se agravar. O mais provável é que eles tenham chegado para ficar.
“Mas eles não fazem nada”, me disse um amigo outro dia. Ainda bem, mas até quando? “Parece que as metralhadoras não ficam carregadas de munição. Embora eles as possuam consigo, eles teriam que parar por um segundo para carregá-las, então não tem perigo imediato”. Menos mal, mas até quando? No entanto, se for este mesmo o caso, poderíamos nos perguntar o porquê de encher as ruas de soldados se eles nem vão ter tempo hábil de “metralhar os terroristas”? Visto por este ângulo, no fundo eles estão lá para não agir. Menos mal. No entanto, já que a justificativa para o qual foram incumbidos de efetuar, isto é, vigiar as ruas para evitar novos atentados, está impedida de ser efetivamente realizada dado o tempo hábil de que eles não dispõem para disparar o seu armamento, talvez fosse melhor afinal que eles não estivessem nas ruas. A naturalização da presença militar efetiva para a defesa da sociedade francesa já está em vias conclusão. Praticamente ninguém, além daqueles vistos como potenciais terroristas que cada vez que cruzam com um patrulha se lembram que é contra eles que aquele dispositivo é dirigido, estranha a sua presença. Nada como comprar pão e ter o privilégio de ter tal escolta no caminho. É quase um luxo.
Se obviamente não é possível, sob hipótese alguma, comparar a situação dos boulevards parisienses com a das favelas cariocas e demais cidades nas quais o exército brasileiro tem sido chamado a intervir, é, no entanto, interessante observar que a ocupação militar do cotidiano civil tem se tornado, cada vez mais, uma prática recorrente para os mais diversos Estados pelo mundo afora. Isso talvez nos lembre que a situação de Estado de Sítio tem sido sentida nas suas mais diversas escalas possíveis. A generalização desse dispositivo militar é no fundo compartilhada por todo mundo. Ou quase. Há um outro aspecto que decorre e que também é interessante de ser observado no uso militar pelo governo francês. Ao menos por enquanto, ele tem se dado na direção contrária à brasileira. Os bairros populares localizados nas banlieus das grandes cidades continuam sob forte vigilância e controle apenas do aparelho policial. O exército ainda não foi chamado para intervir nestas localidades. O dispositivo militar se encontra nos grandes centros. Dito de outra forma, com a sua intensa presença nas ruas de Paris, ele meio que passa a funcionar como um dispositivo ideológico de pacificação da classe média e da elite francesa. No final das contas é quase um teatro social. O exército serve para lembrar a estas camadas que eles não precisam se preocupar demasiadamente, pois o Estado continua sim firme e forte, omnipresente.
imagem: Basquiat