A morte branca de uma feiticeira negra

 

 

Por Alana Moraes

Uma névoa densa e ácida ainda habita nossos pulmões.
Foi o Estado.
A respiração experimenta um ritmo impreciso. É forte e súbita como a ventania que tomava conta do Rio de Janeiro no instante em que Marielle era executada.
Foi o Estado.
Dizem que é no pulmão onde guardamos as tristezas difíceis.
Foi o Estado.
Estamos inundadas por dentro, respirando o vendaval deixado pela ausência forçada de Marielle.
Foi o Estado.
A bala que perfurou Marielle pertencia ao Estado e ele vai ter que provar sua inocência – mas à essa altura, já não somos tão ingênuos para acreditar em suas provas.

No mesmo momento em que tentamos reunir força e coragem para juntar nossos cacos e para recuperar a voz que não seja apenas grito, temos que ver a Globo se apresentando para contar essa história. A globo está desaparecendo com Marielle pela segunda vez. A Globo está arrancando de nós uma história, um corpo, um grito. E está fazendo isso com uma habilidade assustadora. Bem diante dos nossos olhos.

Já sabemos bem que a história que nos contam é quase sempre a história dos vencedores.  “Até que os leões possam contar a sua história a caça glorificará sempre o caçador”diz um antigo provérbio africano. No dia de sua execução, Marielle lembrava no twitter o nascimento de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra que ousou contar sua própria história. Diário de uma favelada foi uma arma contra a autoridade narrativa dos poderes que traduzem, explicam, interpretam.

O que vimos no Jornal Nacional de sexta-feira e no fantástico de domingo foi uma violência narrativa, um ataque simbólico e extremamente concreto à força de Marielle, à sua voz e luta política. Imagens de Marielle entram em cena nas reportagens, quase sempre, silenciadas e narradas por um narrador externo. Quando Marielle aparece falando é sempre interpretada por uma voz (branca?) que explica sua atuação: “ela lutava por paz”, “ela queria justiça”, “os brasileiros que não toleram mais a violência, a covardia e a impunidade”. A globo é parte dessa ficção que produz medo para vender a segurança, cúmplice da política de militarização e pilhagem dos recursos públicos. Mostram militares “levando a cidadania” à favela, a única saída possível. A Globo está vendendo seu renovado programa político.

 

O que está em curso é uma operação de  domesticação da figura de Marielle, a fabricação de uma comoção que clama por “justiça” e “punição”, mas temos que saber: essa justiça não é a nossa. A nossa guerra tem nome. A guerra de Marielle era contra o Estado penal, a cultura punitivista e patriarcal, o funcionamento racista e colonial que ainda dirige a potente máquina de exterminar e encarcerar pretos pobres. Essa máquina que também é dirigida pela emissora quando legitima cotidianamente chacinas, execuções, ocupações militares. É um renovado regime de governo sustentado por poderes à margem da lei, no qual a “paz” assume a face de uma guerra incessante.

Não vamos aceitar a violência interpretativa da Globo, não concedemos à essa empresa o direito de narrar nossos mortos. Não vamos aceitar o esvaziamento político da execução de Marielle.

 

É preciso respeitar a dor, o luto, o sofrimento dos mais próximos – mas é também preciso coragem para não deixar a dor ser capturada pela máquina de extermínio, pela necropolítica da globo e daqueles que defendem a militarização do rio de janeiro, do Brasil. O filósofo camaronês Achille Mbembe costuma dizer que o capitalismo contemporâneo tem um projeto de tornar negro o mundo todo, expandindo assim a experiência de violência e exclusão que é parte constitutiva da vida negra. Essa necropolítica, segundo o filósofo, atua pela “instauração de práticas imperiais inéditas que devem tanto às lógicas escravagistas de captura e de predação como às lógicas coloniais de ocupação e exploração”.

 

A execução de Marielle não foi fruto de um “caos” ou “desgoverno”, mas ao contrário, a execução é parte de um plano de governo. Um governo cujo programa é a produção incessante do medo e de inimigos matáveis. A máfia de todas as máfias ainda é aquela que compra deputados, compra a justiça e agora decidiu empenhar um crédito extraordinário de mais de um bilhão para a intervenção no Rio de Janeiro. Mas a nossa guerra não se compra.  A globo está usando a comoção em torno da morte de Marielle para convencer a todos que não temos mais saída a não ser a intervenção militar. Pacificar para governar.

 

No candomblé, Exu é um orixá extremamente poderoso, capaz de transitar entre o sagrado e o profano, o mundo dos vivos e o mundo dos deuses. Exu é a figura mais importante da cultura iorubá: ele é capaz de falar todas as línguas e, portanto, se impõe soberano na arte de narrar. Ele é o começo de tudo e o começo foi a desobediência de Exu recusando  as fronteiras entre o mundo dos deuses e o mundo da carne, do humano.

No final da década de 1970, Renato Ortiz escrevia um livro sobre as transformações e traduções da figura do Exu do candomblé para a umbanda. Com suas influências católicas e kardercistas, a umbanda (em algumas de suas expressões, não é possível generalizar) operou uma “purificação” de Exu, o tornando um “guardião de luz para as trevas”, um espírito em constante “crescimento e evolução”. Foi a morte branca de um feiticeiro negro.
A potência de Marielle deve ser cuidada e amplificada. Exu é o fim, mas antes disso, o começo. O Estado colonial e suas formas narrativas operam domesticando a revolta, silenciando os tambores, purificando os sacrifícios. Marielle é nossa encruzilhada histórica. Seu corpo agora vibra desobedecendo fronteiras entre mundos, nos convoca a pensar sobre a força política da ancestralidade. Marielle não é santa, mas feiticeira. Feiticeira negra de um mundo que nunca se calou e que não se pode deixar traduzir.  Denunciava o enquadramento maniqueísta do estado penal e profanava seu esquema de classificação que elege os matáveis daqueles que merecem viver. Os bandidos são os mocinhos, insistia Marielle.
Silvia Federici afirma que se Marx tivesse olhado a história do surgimento do capitalismo pela perspectiva das mulheres, ele não seria tão otimista com a noção de progresso. A execução de Marielle nos arrasta também para uma perspectiva incontornável: o pilar de todo o poder é ainda o Estado colonial, racista e patriarcal. A reação neoliberal hoje no mundo e o que conhecemos como politica de austeridade tem como modo de funcionamento o genocídio contra o povo negro, o encarceramento, sem falar na explosão do feminicídio – produzir miséria e conter a revolta. A guerra é declarada e se a esquerda não assumir essas perspectivas vamos ser engolidos pela máquina de extermínio neoliberal.
Precisamos reconstruir nossa radicalidade a partir de uma nova língua. Nomear aqueles que nos matam, convocar saberes ancestrais que estão há séculos construindo e narrando experiências de resistência e sofrimento. “Para curar a cisão entre mente e corpo, nós, povos marginalizados e oprimidos, tentamos resgatar a nós mesmos e às nossas experiências através da língua. Quando preciso dizer palavras que não se limitam a simplesmente espelhar a realidade dominante ou se referir a ela, falo o vernáculo negro”.  Aprender com Bell Hooks e o feminismo negro. O grito de liberdade de Angela Davis. A força de vendaval de Marielle Franco.