Do protesto aos arranjos tecnopolíticos: recursividade e reticulação

por Henrique Parra

Tomar as ruas, protestar e expressar nossa indignação é fundamental. Porém, pressionar os governos e as instituições já não parece ser suficiente para traduzir as reivindicações das ruas em novas políticas ou práticas institucionais. Essa crise não é exclusiva do Brasil, mas aqui a situação adquire formas e conteúdos específicos. E como em toda guerra, essa é também uma guerra de velocidades entre ecossistemas concorrentes. O assassinato da vereadora Marielle Franco não é apenas uma mensagem de ameaça a tod@s ativistas, é também uma tentativa de bloquear um caminho de ação política institucional (construção de mandatos populares, partidos e disputa eleitoral). É um crime racista, de gênero (feminicídio), de classe e contra todas as forças e pessoas que ela representava. Tudo parece indicar que o momento histórico exigirá uma multiplicidade de novas formas organizacionais, ferramentas, tecnologias e estratégias de luta. Não é esta ou aquela, mas a combinação de várias estratégias. Não se pode enfrentar o novo com velhas armas.

Como transformar a energia política das ruas em ganho organizacional e novas institucionalidades? Os limites de junho de 2013 e a forma de captura pelos poderes instituídos do potencial político da multidão deveria servir de lição. Diante das configurações políticas do pós-Golpe e dos protestos multitudinários contra a execução de Marielle essas questões retornam.

Entendo que seja muito importante disputar as eleições, as instituições etc. O assassinato de Marielle e de tantos outrx ativistas políticos no Brasil é uma clara resposta à ameaça que esta nova geração de lutadoras representa aos poderes instituídos. Ao mesmo tempo (e de forma complementar) é urgente imaginarmos e praticarmos outras formas de ação para além dessas que conhecemos e seguimos fazendo nos últimos 30 anos.

Acredita-se demasiadamente no poder discursivo e na capacidade da mobilização ideológica. Mas, o poder é sobretudo logístico, é maquínico, funcional, pragmático. Em nossas vidas o poder se inscreve e se realiza mediante dispositivos materiais-simbólicos, humanos e não-humanos. Nossas ações realizaram-se com técnicas e artefatos sociotécnicos. Militantes e ativistas poderiam conversar mais com xs arquitetxs, xs engenheirxs, xs físicxs, biólogxs, cientistas da computação, médicxs etc. É necessário investigar uma outra camada, transbordando do protesto em direção a experimentação prática (prototipagem). Isso não é novidade, muitos coletivos e comunidades já estão fazendo isso.

A criação da pílula anticoncepcional, o protocolo TCP/IP da internet e o telefone celular são exemplos de artefatos técnicos-científicos que produzem arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares. Sua forma de adoção e propagação vai gradativamente modificando as relações sociais através do seu uso, e os efeitos de sua adoção nas pontas (sujeito individual ou máquinas) cria mecanismos de reforço sistêmico. Também podemos citar algumas comunidades territoriais que desenvolvem formas de autogoverno sobre seus recursos e infraestruturas comuns (água, eletricidade ou da sua pequena horta). Certas ordens religiosas também são exemplos de tecnologias organizacionais capazes de criar economias de suporte e com infraestruturas (materiais e simbólicas) interdependentes. Não a toa, o controle de infraestruturas e serviços básicos pelo crime organizado em espaços da vida social coloca em funcionamento toda uma máquina social, com normas, modos de subjetivação e legitimação próprios. Em todos esses casos o problema de escala é atacado de outra forma, por reticulação.

Há duas noções que podem contribuir para a construção de novos arranjos sociotécnicos: recursividade e reticulação.

Recursividade: faço uma livre combinação desta propriedade da ciência da computação com a caracterização de Chris Kelty sobre as comunidades de software livre. Uma prática, uma tecnologia, uma organização que atue recursivamente está desenhada para a resolução prática de um problema, cujo modo de ação dá-se mediante a criação de sub-rotinas que atacam frações de um problema maior, e a cada movimento ela volta à sua função (missão) original, porém agregando um “aprendizado” que a torna mais eficiente. Este aumento de eficiência (ou ganho de poder) acontece também porque além de resolver partes do problema (diminuindo a força do seu oponente) ela modifica gradualmente o seu meio de ação (meio-associado), criando um ecossistema mais favorável à sua execução. Ou seja, um artefato recursivo é um dispositivo prático (material-simbólico) que executa um programa (uma ação normativamente orientada) cuja eficiência está na transformação do seu meio-associado e não apenas na realização de um objetivo final abstrato). Como efeito, a recursividade apoia-se na produção de uma “comunidade” ou de “públicos recursivos” que dão sustentação ao processo.

Reticulação: da cristalografia e do pensamento de G.Simondon, mas também dos estudos de inovação em ciência e tecnologia. A reticulação é um processo de propagação não-linear e rizomático de uma estruturação emergente criando níveis subsequentes de estruturação de uma realidade. Quando uma prática, uma tecnologia, uma organização se reticulariza, significa que ela é capaz de tornar durável, de diferentes formas, o seu programa de ação, criando níveis crescentes de estruturação. Como efeito, ela amplia sua capacidade de determinação sobre um campo de possíveis. Ou seja, a reticulação dá maior consistência e força para seu programa de ação.

Passar do protesto à criação de arranjos sociotécnicos recursivos e reticulares significa encontrar formas de organização, práticas e tecnologias adequadas ao novo contexto, capazes de traduzir, mediar e atualizar certos valores através desses dispositivos, para que sua adesão e utilização se propague através de crescente estruturação. Diante das novas formas de exercício do poder quais são as nossas tecnologias de contra-poder? Como nos organizamos, como criamos novas relações de suporte entre nossas práticas, qual é nosso economia, como cuidamos de nossa saúde coletiva, quais são as infraestruturas necessárias e como assumimos controle sobre elas? Investigar a fundo os problemas que enfrentamos, construir estratégias para a criação desses dispositivos e dos pontos-obrigatórios-de-passagem é um ótimo programa de pesquisa-ação.

#Marielle&AndersonPresente!