Sobre “Arte em Fuga” de Joana Zatz Mussi

por Henrique Parra

7 de dezembro de 2017.

Participei por  videoconferência da banca de defesa de doutorado da Joana Zatz Mussi. O título da sua tese – Arte em Fuga. A banca foi composta pela orientadora Vera Pallamin e demais examinadores Celso Favareto, Silvia Viana, Pedro Cesarino. Transcrevi abaixo as notas da minha arguição. Muito em breve a tese estará disponível online, recomendo a leitura do trabalho da Joana!

Quero agradecer ao convite da Joana Zatz e de sua orientadora Vera Pallamin para participar dessa banca, e pelo esforço organizacional para viabilizar a arguição à distância. Avisei a Joana que isso implicava em alguns riscos para a realização da banca, mas ela estava confiante de que tudo correria bem e seguimos com a proposta. Agora, ouvindo a Joana apresentar a tese e vendo os colegas ai do lado, apesar da distância, sinto-me muito próximo, ouvindo vocês de pertinho.

Recebi e li a tese da Joana na versão digital. A versão impressa enviada pelo correio ficou retida na anfandega espanhola. O instituto de pesquisa onde estou trabalhando recebeu 4 notificações de urgência alertando sobre um material (não descrito) destinado a mim que fora retido no aeroporto. Como eu não tinha certeza do se tratava, nem tinha recebido qualquer informação de quem era o emissor do pacote (a anfandega nao dizia isso), achei melhor não ir buscar a encomenda e fiquei apenas com a leitura digital. Mas de volta ao Brasil quero sim a versão impressa da tese.

É muito bom quando podemos acompanhar o desenvolvimento de um trabalho de pesquisa. Parcipei da banca do mestrado da Joana há alguns anos, e agora, vejo um novo trabalho que segue aprofundando e dando mais consistência para suas práticas e criações. Esta tese, neste sentido, delinea muito bem o próprio percurso da Joana.

Sua forma de produção de conhecimento e seu prática como pesquisadora, artista e ativista estão muito bem sintonizadas. A redação da tese e estrutura escolhida destacam alguns elementos que atravessam todo seu percurso: a tensão entre arte-política, uma certa concepção de espaço e território, a centralidade do corpo e sua dimensão experiencial, a tensão entre instituição e o seu fora; as relações com a cidade.

Esses elementos são abordados de uma perspectiva teórica bem específica. As escolhas da Joana inscrevem o seu trabalho numa rede de filiações teóricas e políticas, uma família não-sanguínea de autores: Foucault, Deleuze, Agamben, Lefefbre, Harvey, Comite Invisível, Rolnik, Lazaratto, Ranciére e agora Laval e Dardot, entre outros. São todos autores que, apesar de suas diferenças, proporcionam uma certa mirada sobre as dinâmicas de composição do social, sua estética e sua política, e cuja interpretação está implicada numa certa proposta de intervenção no mundo. Mas há tensões importante entre eles tambem.

O trabalho da Joana (pesquisa, pratica artistica, ação politica) faz esse entrelaçamento de forma imanente, realizando na sua própria prática um pouco daquilo que esses autores também apontam como modo de conhecer e agir. Ela realiza um modo de conhecer através de uma pesquisa-situada, uma pesquisa-implicada (que significa um outro modo de relação entre aquele que investiga e o mundo) que envolve também uma articulação entre o processo de investigação e sua forma de visibilidade. Portanto, movemo-nos dentro de uma certa episteme e de uma certa comunidade de práticas.

E este modo de conhecer mobiliza um vocabulário que atravessa toda a escrita da tese. São palavras-conceitos importantes: limiar, desvio, corpo, experiência, fabulação, imaginário, prática, minoritário, espaço, vulnerabilidade, local, comum, superfície, vida cotidiana…

No atual contexto político que vivemos, esse trabalho procura criar um caminho alternativo à configuração hegemônica dos modos de se fazer política. As formas de produção de maioria, os mecanismos de pensamento identitário e de criação de oposições binárias, as formas de disputa macropolítica, são exatamente as dinâmicas que Joana procura evitar. O jogo que ela propõe (e sua rede de autores e de praticas a que ela está vinculada) é totalmente diverso. Este plano (ou superfície) em que a Joana se move tem outras preocupações.

Ainda assim, estamos todos num mesmo planeta (ainda que dentro dele caibam muitos mundos, e essa possibilidade de existência diversa é inclusive parte da luta). Mas isso significa também que essa forma de ação política não está completamente isolada daqueles outras dimensões.

Suas perguntas: como criar e sustentar outros modos de existência? como transformar os regimes de sensibilidade e percepção? como se relacionar com o instituído e abrir as brechas para o instituinte? Como provocar acontecimentos? Como criar situações insurrecionais? Como articular a existência cotidiana com a produção do novo?

São todas grandes pesguntas, e sua tônica aponta sempre para o “como fazer”, ao invés do habitual “o que fazer?”. Criação de ações conjuntas, experimentando e acompanhando formas de produção de novos corpos coletivos, cuidando, provocando outras sensações e imaginações, Joana seleciona um conjunto de práticas “minoritárias”, ações de “desvio” que compõem uma ampla rede de situações micropolíticas. Como fazer proliferar e crescer essa rede? É outra pergunta que ela lança.

Parece-me todavia, que já não podemos nos concentrar exclusivamente em um dos pólos da situação. Assim como já não é suficiente pensarmos em termos exclusivamente macropolíticos ou micropolíticos. Estamos vivendo um momento crítico que exige muita imaginação e ação prática experimental, e sobretudo uma capacidade de construir pontes, de pensarmos em termos de interdependencia, mais do que em independencia/autonomia, de ultrapassarmos os bloqueios colocados por uma certa concepção geográfica e de escala (microXmacro, localXglobal). Se podemos facilmente reconhecer o fracasso da política instituída e do modos atual de governo (sistemas da democracia representativa do estado-nação), também me parece importante reconhecer os limites das práticas alternativas que são experimentadas há pelo menos 30 anos. Só o chamado ciclo das lutas anticapitalistas ou alter-mundialistas do pós-Seatlle já tem quase 20 anos. E neste período muita coisa aconteceu. Em certo sentido, a sensação que tenho é de que houve uma aceleração e intensificação das crises (ambiental, política, subjetiva…) que há 20 anos já estavam em nosso horizonte.

Por isso, a proposta de pensarmos e praticarmos uma mesopolítica, uma política do “meio” (par le millieu), uma política do “entre”, exige outras composições, outras imaginações e práticas que provoquem uma outra partilha do sensivel. O trabalho da Joana aponta algumas experiências, práticas, tecnologias de ação e organizaçao que podem ajudar a compor um repertório dessas outras formas de luta. Porém, esta dimensão “mesopolítica” do comum está mais nas entrelinhas do seu trabalho. Talvez, essa articulação que estou propondo seja apenas uma mudança na topografia selecionada pela Joana, pois de certa forma essas coisas já estão lá, mas também poderia ser um possível desdobramento do trabalho atual.

Vou lançar agora duas questões, provocações para pensarmos juntos, a partir de alguns elementos do seu trabalho que ajudam a evidenciar essa tensão que estou falando. Selecionei 2 tensões onde vejo uma possibilidade de explorarmos outras composições através de uma política do “entre”:

 

1. Tensão entre a dimensão da vida cotidiana e a dimensão do acontecimento.

As práticas que vc realiza e investiga destacam os mecanismos de reprodução do “sistema” no interior da própria vida cotidiana. Por isso, a importancia dada à produção de outros modos de existência que promovam outros mundos possíveis.

Você fala da arte (da arte-política) como esta prática capaz de “traduzir a própria vida cotidiana em forma de ação insurrecional”. A dimensão do “acontecimento”, nesta perspectiva, está ligada a uma certa imagem de “insurreição”. As citações que você utiliza do Comitê Invisível reforçam essa interpreção.

Porém, quando se pensa numa política do cotidiano, o foco desloca-se do “extra-ordinário” para o “ordinário”, para o comum, para aquilo que ocorre na existência de todos, entre-todos, o aparentemente banal. Neste sentido, uma intervenção no âmbito desta política objetiva criar as condições e os meios de sustenção para uma outra condição de existência.

O problema da insurreição é outro, o foco da ação está direcionado à produção de uma situação inesperada, insustentável. É ultrapassar um limiar.

Portanto, não seria mais adequado interrogarmos esse imaginário insurrecional? Uma vez que ele parece dar sobrevida a uma certa “imagem do pensamento”, uma imagem de mudança social ou de revolução que acaba por inscrever essa prática política no tabuleiro que ela pretendia escapar?

Diz o Comite Invisível: “não vão nos obrigar a governar”. Ou, como dizia o MPL, a revolta popular como tática.

De uma duas, ou abandonamos essa imagem da insurreição/revolução para dar lugar a outras políticas, ou partimos da possibilidade desses momentos e, portanto, temos que levar isso a sério e assumir as suas consequências. Em suma, se aceitamos pensar na insurreição não podemos nos furtar de pensar nos nas forças que a produzem, e sobretudo, não podemos deixar de pensar no dia seguinte. Como vamos viver juntos? É outra pergunta que atravessa a tese.

Ou, alternativamente, podemos sim abandonar essa imagem da insurreição e nos dedicamos à construção de uma política cujo foco estaria na produção de comunidades (não-identitárias), de suas instituições, das suas tecnologias, e dos meios de vida que dão suporte a um outro mundo comum, sem nos submeter àquela imagem de insurreição/revolução. Assim, como habitar os limiares?

Como você pensa essas questões a partir dessas práticas que analisa?

 

2. Tensão entre produção de subjetividade e a produção material.

É um problema importante porque você articula produção simbólica, sensível, a fabulação, com a produção da cidade, com os corpos e com toda a materialidade que isso implica. O simbólico e o material não estão separados. A cultura e a técnica não está dissociadas; a natureza e a cultura não são instâncias separadas (essas composições são parte do referencial teórico que você adota).

Pensemos na situação que você descreve sobre o teatro do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. É uma relato trágico. Ainda que eles tenham sido capazes de ressignificar e politizar o processo, de criar uma mobilização política que impulsionou uma nova forma de patrimonio imaterial no plano diretor da cidade, a força dos poderes instituídos foi/é muito violenta. Não se trata se pensar aquela situação como uma derrota. A luta deles provoca transformações importantes que continuam reverberando.

Ao mesmo tempo, como não pensar na cidade que produzimos todos os dias? Pegando o exemplo do teatro, como pensar a resistência aos processos de gentrificação que nos ultrapassam, quando nós somos também partícipes das mutações desse território?

Novamente, como pensar as condições de produção e sustentação do ambiente que abriga essas experiências políticas? Parece-me importante pensar (retomando a questão anterior), quais são as infraestruturas, as práticas, os protocolos que necessitamos para dar sustentação, resiliência aos modos de vida que desejamos propagar.

Numa citação do Comitê Invisível eles falam sobre a política feita de ferro e cimento. Contra um muro o que pode ser feito? Eles respondem: destruí-lo ou pixá-lo. Convenhamos, são duas ações que provocam efeitos muito distintos no mundo.

Em uma das falas de um entrevistado (Eugenio) do NBD, ele aponta os limites da forma público-estatal. O teatro tinha uma dimensão pública, mas isso não foi suficiente. Mas de repente, nos damos conta que o público-estatal, lá no fundo, coincidia com o privado-corporativo. E o teatro veio abaixo. E aí, ele fala da importância de pensarmos o teatro enquanto um comum.

Nessa perspectiva, como voce imagina as técnicas, os procedimentos, as tecnologias de produção do comum? Pergunto isso, por que no caso do projeto de vocês com os secundaristas, sua análise foco mais na reflexão sobre os resultados do percurso, e menos nas práticas que foram desenvolvidos para tornar o projeto possível: quais os modos de escuta, os modos de interação e estar juntos; os modos de pertencimento…Mas como voce argumenta pela importância do processo, seria importante destacar como foi a relação com a instituição, com o MASP, como foi a relação com as escolas? Com os coletivos de estudantes? Quais os conflitos e as formas de resolução encontradas? Como você pensa que essas práticas analisadas relacionam-se com esta dupla articulação material-simbólica na produção de outros “dispositivos” capazes de dar sustentação a essas novas práticas? Acredito que as técnicas, os procedimentos, as soluções encontradas por vocês nesse percurso, são um repertório importante de tecnologias de pertencimento, de tecnologias de produção do comum, por isso, seria interessante descreve-las e torna-las mais visíveis.