Geisel e a insistência do Brasil extra-legal

Mas o leitor, a esta altura, pode estar se perguntando o que isto tem a ver com as atuais violações de direitos cometidas pelo Estado. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, citados e analisados na dissertação de Marielle Franco (“UPP – a redução da favela a três letras”), constata-se que “entre o ano de instauração e o seguinte, há um crescimento na ordem de 72,7%” nas áreas sob a ação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

 

por: Edson Teles

“O Presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o Centro de Informações do Exército (CIE) prender alguém que possa ser enquadrado nesta categoria [subversivo perigoso], o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, quem deverá aprovar antecipadamente a execução da pessoa”.

Esta cena estarrecedora do crime de Estado consta de um memorando da Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA), de abril de 1974. Trata-se da descrição de uma reunião do alto comando militar do país, com a presença do general presidente Ernesto Geisel, do chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) e futuro presidente, general João Batista Figueiredo, e dos generais comandantes do CIE, Milton Tavares de Souza e Confucio Danton de Paula Avelino.

O memorando, cujo título é “Decisão do presidente brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de subversivos perigosos sob certas condições”, tem gerado interpretações e debates neste momento em que se torna público. Possui seis parágrafos, sendo que dois deles, o primeiro e o quinto, são mantidos ainda hoje como sigilosos (“não desclassificados”).

Não fosse o Brasil um país sob inúmeras ilegalidades, com forte atividade de violação de direitos por parte do Estado e sob intervenção militar no Rio de Janeiro e presença dos generais no cotidiano da política, tal memorando poderia passar quase desapercebido da opinião pública mais geral.

Gostaria de colaborar com a releitura do momento histórico descrito no memorando a partir de três apontamentos principais, os quais, me parece, conectam a política de extermínio da ditadura com as práticas do Estado genocida do presente: o desaparecimento forçado; os “métodos extra-legais”, como teria dito o general Milton Tavares no memorando; e, a não abertura dos arquivos militares.

Ao tornar evidente a cadeia central de comando na política de execução, algo já sabido e certificado pelo Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), algo escapou de uma análise mais imediata: a decisão de desaparecer com os corpos executados. Vejamos os números, de acordo com o mesmo relatório da CNV. No ano anterior à dita reunião, 1973, sob o governo do general Médici, 79 pessoas foram executadas segundo os “métodos extra-legais”. Destes, 31 foram considerados mortos, com a apresentação do corpo, e 48 desaparecidos, sem que seus corpos tenham sido devolvidos, nem na época, nem em democracia (das dezenas de opositores desaparecidos na ditadura, até hoje menos de 10 corpos foram localizados e enterrados dignamente).

Os cerca de 60% de casos de desaparecimento denotam, em 1973, uma política de Estado visando apagar os rastros de seus crimes. Em grande medida, sob o impacto da eliminação de vidas e corpos na região do Araguaia, onde se organizava uma resistência armada, e, ao golpe no Chile, cujo Estado passou a colaborar com as forças repressivas brasileiras e intensificou o desaparecimento forçado no continente.

No ano de 1974, com o general presidente Geisel, da “abertura lenta, gradual e segura” e que teria ficado famoso por conter a violência e preparar o país para a volta à “democracia”, houve 55 execuções. Foram 2 mortos e 53 desaparecidos. O desaparecimento salta para o índice de 96% do número de executados. Segundo o próprio Geisel, conforme consta do livro “A ditadura derrotada” (Gaspari, p. 387), era preciso “agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa”.

Mas o leitor, a esta altura, pode estar se perguntando o que isto tem a ver com as atuais violações de direitos cometidas pelo Estado. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, citados e analisados na dissertação de Marielle Franco (“UPP – a redução da favela a três letras”), constata-se que “entre o ano de instauração e o seguinte, há um crescimento na ordem de 72,7%” nas áreas sob a ação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).

Caso emblemático é o desaparecimento do Amarildo, em julho de 2013. Sequestrado, torturado e assassinado, teve seu corpo desaparecido e nunca mais localizado após ser preso pela Polícia Militar. Há imagens que mostram Amarildo sendo levado para o posto da UPP da Rocinha, onde morava. Exposição cruel do país é que os primeiros protestos de denúncia do seu desaparecimento ocorreram com o fechamento do túnel Zuzu Angel, nome dado ao local em homenagem a mãe de Stuart Angel, desaparecido político em 1971. Zuzu, desde a prisão e desaparecimento do filho, sempre denunciou a ditadura pelo crime. Em 1976, ela morreu em acidente provavelmente montado por agentes da repressão. Para a CNV, sua morte foi montada e efetivada pela ditadura.

Não se trata de dizer que a política decidida em 1974 ainda esteja em vigência. É bem mais grave a constatação. Trata-se de observar que a “abertura lenta, gradual e segura” do general Geisel e sua tropa produziu uma transição controlada cuja marca maior, em termos das estruturas e estratégias de um Estado repressivo, foi a continuidade em vez da ruptura. O processo político de redemocratização não desmilitarizou a segurança pública, não reviu as práticas das instituições do judiciário e não modificou a Constituição, em 1988, no que tange às polícias e ao controle social pelo Estado.

Não houve no país uma política de memória e verdade, mal se fez reparações pecuniárias e alguns poucos lugares de memória. Entre 40 e 50 anos após estes crimes se montou uma tímida comissão da verdade. E, principalmente, se evitou ao máximo, nas instituições do Estado, relacionar a violência do passado com as práticas genocidas e de extermínio do presente.

Hoje tempos um general gestando a segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Os crimes cometidos por militares contra civis voltaram para a justiça militar, como nos tempos da ditadura. Tanques e soldados desfilam pelas ruas de grandes cidades. Intervenção sem planejamento público e conhecido.

No começo da intervenção militar no RJ, o comandante do Exército exigiu para os militares a “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. É como se as Forças Armadas cobrassem uma “anistia em branco” e prévia à prática de crimes. Seria, caso efetivado, a liberação do uso de “métodos extra-legais” para agir nos morros cariocas, como faziam na ditadura.

A emergência de documentos comprovando operações de extermínio por parte do Estado brasileiro nos anos 70 tornam eventos da democracia ocorrências ainda mais graves do que já foram. Segundo relatório de pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo em parceria, entre outros, com o Movimento Mães de Maio, fica explícito a chacina de mais de 500 pessoas em uma semana, no mês de maio de 2006. O estudo demonstra que os tiros fatais, na sua grande maioria, foram dados de cima para baixo e na região da cabeça. Ação de extermínio via “processos extra-legais”.

Apesar de haver no país uma razoável lei de informação, não tivemos acesso aos arquivos militares da ditadura. Nem mesmo a Comissão Nacional da Verdade obteve tais documentos. Sim, as Forças Armadas alegam que foram destruídos. Mas isto nunca foi comprovado. São apenas breves declarações em ofícios burocratizados. Não houve até hoje qualquer prova de que realmente tenham sido destruídos. Ao contrário, em alguns poucos momentos do pós ditadura surgiram documentos militares acerca do processo repressivo.

Bem como, sobre os crimes de maio de 2006, não houve apuração e os documentos oficiais que comprovam o extermínio não foram considerados. A maior parte dos laudos médicos legais comprovam a chacina. O Estado brasileiro, à época, não quis federalizar as investigações, medida necessária devido ao envolvimento de forças policiais do Estado de SP.

Conhecer hoje o que fizeram Geisel e companhia, diante do quadro de violência e terrorismo de Estado em que vivemos, demanda medidas criativas e inusitadas, sem as quais não há como efetivar processos de democratização. É preciso uma outra comissão da verdade para apurar os crimes do Estado em democracia e relacionando-os às estruturas já expostas pelo relatório da CNV.

Paralelamente, seria fundamental reinterpretar a Lei de Anistia de 1979, tornando puníveis as graves violações de direitos, em especial os desaparecimentos forçados, o que exporia um modus operandi ainda em prática nas polícias atuais e ainda poderia atingir a cultura de impunidade em vigor.

Por fim, a possibilidade de termos uma política de segurança pública transparente, não genocida, passa pela abertura dos arquivos militares da ditadura, bem como os referentes às ações das polícias, em especial as militares, que produziram eventos como a “Chacina do Carandiru” ou os “Crimes de Maio”.