A destruição da empatia (e as lágrimas felizes)

por Amador Fernández-Salvater

Originalmente publicado em espanhol em: https://www.eldiario.es/interferencias/8M-Patricia_Ramirez-Mame_Mbaye_6_753184690.html

Tradução Tática: Alana Moraes, Anne Clio, Graciela Foglia, Henrique Parra

É possível ler a conjuntura política não simplesmente como uma disputa entre diferentes grupos pelo poder, mas como um choque entre diferentes percepções da vida social, entre diferentes sensibilidades da vida em comum?

Vamos experimentar responder a essa pergunta apoiados no sugestivo conceito de “pedagogia da crueldade” proposto pela antropóloga Rita Segato. Explico muito brevemente esse conceito abaixo.

Em nossas sociedades a vida se torna cada vez mais precária: o desamparo e a falta de proteção são tendências gerais e transversais.

O capitalismo de hoje não procura simplesmente a sua reprodução regulada, mas busca incessantemente a conquista de novos territórios objetivos e subjetivos: novas terras e novas camadas do ser para explorar. É um capitalismo de rapina.

Essa conquista permanente exige, não apenas a abolição das antigas regulações e proteções (muitas vezes fruto das lutas dos debaixo), mas de uma dessensibilização radical.

Na guerra de todos contra todos, a competição geral e o salve-se quem puder, o outro deve ser percebido acima de tudo como um obstáculo, uma ameaça: como inimigo.

O princípio da crueldade se realiza como redução da empatia: o outro é descartável e dispensável, nenhum fio me liga a ele, nossos destinos não têm nada em comum.

Existe toda uma “programação neurobélica de baixa empatia” em nossas sociedades. E a violência aqui é a ferramenta chave: lança a mensagem instrutiva de que o outro (mulher, velho, migrante, pobre, negro, dissidente) é supérfluo, pode ser eliminado.

O que sustenta as políticas de precarização da vida é uma certa configuração (ou desconfiguração) da percepção e da sensibilidade. Estas são questões políticas de primeira ordem, mas as análises de conjuntura as ignoram, concentrando-se em vez disso nas manobras partidárias, nas intrigas palacianas, nas relações de força entre organizações e facções, nas sondagens e na “opinião pública “. É necessário e urgente equipar-se com uma sensibilidade poética sismográfica para entrar e descrever este plano de realidade.

Direitização afetiva

Muitas vezes já foi dito. O 15M (movimento dos Indignados) funcionou na Espanha como um “firewall” contra a ascensão do populismo de direita que se estende nos níveis micro e macro em toda a Europa: Frente Nacional, Brexit, Alternativa para a Alemanha, Pegida, Liga do Norte, Casa Pound, Amanhecer Dourado.

Mas que tipo de “firewall” foi aquele? De nossa parte, ainda insistimos em pensar e descrever o 15M como um efeito de sensibilidade. Um fenômeno de sensibilização coletiva. A partir de maio de 2011, uma espécie de “segunda pele” foi implantada por toda a sociedade, através da qual se sentia como algo próprio e próximo o que acontecia a outros desconhecidos.

Isso não significa que todos estavam presentes em cada despejo nos bairros, em cada acompanhamento de um migrante sem cartão de saúde, em cada confinamento em uma escola ameaçada de cortes, mas sim que havia um clima social geral que envolvia, conectava e amplificava cada ação, cada iniciativa. O 15M criou um comum sensível no qual era possível sentir os outros e com os outros, como semelhantes.

Essa pele foi arrancada ou adormeceu, enfraquecida em grande parte por uma “verticalização” da atenção e do desejo, depositada e delegada durante o “ataque institucional” da promessa eleitoral da nova política (Podemos, confluências, etc). Cativados pelos estímulos que vinham de cima (TV, líderes, partidos), negligenciando o que acontecia ao nosso redor, a pele rachou.

Na realidade, não saímos de nenhuma crise: simplesmente perdeu-se o contato sensível entre os “afundados” e os “salvos” (ou aqueles que pensam que estão salvos por enquanto). A retirada do “firewall” 15M deixa o caminho livre para as forças que estão sempre aí: o aprofundamento e a consolidação da precariedade existencial geral, a guerra de todos contra todos, o salve-se quem puder.

O veneno de amargura que reside em cada um por tantas humilhações sofridas no cotidiano, sejam grandes ou pequenas, reais ou imaginárias, torna-se o ferrão de um ressentimento vitimista, circulando hoje com prazer pelas redes sociais.

A “direitização” da qual se fala ultimamente, especialmente como a raíz do que “despertou” em toda Espanha no conflito da Catalunha, não é, em primeiro lugar, uma questão ideológica, identitária ou política, mas uma tensão social e afetiva. Um endurecimento da percepção e sensibilidade.

O fundo do conteúdo das bandeiras espanholas que ainda podem ser vistas em tantas varandas (já valem para a copa do mundo …) é o medo, a amargura, a solidão, o desejo reativo de ordem, consumo e punhos cerrados contra tudo que desestabilize ou desvie a ficção da normalidade, com o anti-catalanismo como o primeiro elemento aglutinante.

Ciudadanos (com fortes ressonâncias de Macron) é certamente o partido que, de maneira mais desenvolta, agita hoje essa “paixão obscura” (Diego Sztulwark) a fim de capturá-la mais tarde eleitoralmente, fazendo dela a base do projeto político de transformar a sociedade em uma empresa total. Onde só há lugar para os vencedores, onde não há espaço para os adversários (destituídos como interlocutores mediante a repressão, a censura e a criminalização), nem tampouco para as “anomalias” (como os comuns urbanos, as ocupações, os ambulantes).

Nesse fundo obscuro e tenso também aparecem vozes e movimentos que convocam outra sensibilidade, ativam outra percepção e abrem outra pele. Sem nenhum espírito exaustivo ou totalizante, vou me concentrar em três exemplos (há mais). O 8 de março e as mobilizações em torno das mortes de Gabriel Cruz e Mame Mbaye.

O mandato de masculinidade

Segundo Rita Segato, a primeira expressão da pedagogia da crueldade é a violência machista. O capitalismo do roubo instaura um campo de batalha no corpo das mulheres.

Na condição de precariedade geral, a posição do homem está fragilizada: ele não pode prover, ele não pode ter, ele não pode ser. Mas ao mesmo tempo ele tem que provar que ele é um homem. Os machos estamos submetidos a um “mandato de masculinidade” que nos obriga a demonstrar força e poder: físico, intelectual, econômico, moral, bélico etc. O mandato da masculinidade hoje se traduz assim em um mandato de violência.

O estupro não é erótico ou prazeroso, mas uma demonstração de poder. O poder do impotente, ansioso para provar que ele é, que segue sendo um homem. É uma mensagem que um homem envia a outros homens: eu posso, sou capaz, sou dono das vidas. Não é um fato excepcional, algo feito por machos monstruosos ou “psicopatas”. Se assenta em uma base composta de mil violências cotidianas e transversais: no espaço público e no íntimo, na rua e na casa, no trabalho e nos relacionamentos.

A mulher não é simplesmente um corpo-vítima da violência. O que se agride nas mulheres é precisamente sua força insubmissa ao mandato de masculinidade, a capacidade de criação de vínculos, de laços, de redes, de cumplicidades, de empatia e comunidade.

O 8M visibilizou milhares de mulheres em toda a Espanha dizendo basta, em uma jornada inaudita de greve e manifestações massivas. Seus cantos e cartazes podem ser lidos como um registro detalhado das milhares de violências diárias que habitam a “normalidade”. As mulheres não voltam iguais depois de terem vivido uma jornada tão excepcional, mas voltam mais unidas e mais fortes. O 8M é apenas a crista de uma onda grande que impulsiona a transformação completa da vida cotidiana, um “viveiro” da violência mais espetacular que vemos no noticiário.

E também pode ser assumido como uma ocasião para os homens que querem desobedecer o mandato da masculinidade e sair desse circuito funesto entre a indigência existencial extrema e a obrigação de demonstrar poder. Como um convite à metamorfose.

 

As ações bonitas

O desaparecimento e a busca de Gabriel Cruz, o “peixinho”, tem sido um fenômeno altamente midiatizado. .

A mídia e as redes sociais são hoje, especialmente de um tempo pra cá, os veículos privilegiados da pedagogia da crueldade. As tendências a espetacularização (o mórbido), a simplificação da realidade (o juízo e não o pensamento) e a polarização social (a lógica de bandos, bons e maus), os atravessam transversalmente. Mas não importa se a realidade é instrumentalizada à favor da direita ou da esquerda: se contribui, em qualquer caso, para a destruição da sensibilidade, do pensamento e da autonomia.

Apesar de tudo, a mídia e as redes facilitaram por vários dias a ativação de muitas pessoas que ajudaram na busca de Gabriel ou queriam fazer com que sua família sentisse calor e solidariedade. O apoio se transformou em ódio quando se encontrou o corpo do menino e se conheceu a identidade do assassino: mulher, estrangeira, negra. Neste contexto, a voz de Patricia Ramirez, mãe de Gabriel, ressoou como vinda de outro mundo, quando na verdade vinha do amor mais comum que existe: o amor de mãe.

Sua mensagem principal: não se concentrar na raiva e no inimigo, mas na solidariedade e ” nas ações bonitas”. Deslocar a atenção para os gestos de apoio que “traziam o melhor das pessoas” durante esses dias. Que o que permaneça, no absoluto absurdo da morte de Gabriel, é a memória calorosa do abraço social. “Porque outras pessoas vão precisar disso no futuro.”

De onde Patrícia conseguiu forças para não ser envenenada pelo desejo de vingança? É a questão que os jornalistas perguntavam repetidas vezes, perplexos e impressionados. E ela sempre respondeu da mesma forma: “Em homenagem ao peixinho, ele não era assim e eu também não”. Ou seja, não é que Patrícia tenha conservado o “bom senso” e a “cabeça fria”, como se os afetos levassem diretamente ao ódio e à raiva e apenas a “razão” pudesse contê-los. Essa é a visão masculina típica. Na verdade, é exatamente o contrário: a voz de Patricia veio do amor por seu filho, de gratidão para com aqueles que se moviam por ele e do desejo de que sua memória não estivesse associada à raiva vingativa. Dos afetos.

Precisa e preciosa palavra, cheia de humanidade e ternura, rica em metáforas muito físicas (relacionadas frequentemente à água: o rio aberto, a onda de solidariedade, a ressaca da dor…), a voz de Patricia conseguiu desarmar a voracidade da mídia e redes sociais, baseada na lógica da espetacularização, simplificação e polarização social.

E nos trouxe, indiretamente e como um presente, algumas indicações de que todos podemos converter em modos de resistência a destruição da empatia e o cultivo de outra sensibilidade: implicar-nos em vínculos de cuidado, buscar a intimidade e o silêncio, agradecer o carinho, transformar os afetos reativos em afetos ativos, evitar a instrumentalização, não deixar que outros falem em nosso nome, não buscar excessivo protagonismo, “olhar sempre dentro do coração”.

 

Guerra entre os pobres

Mame Mbaye, de origem senegalesa, vizinho de Madrid e trabalhador ambulante, morreu no dia 15 de março no contexto de uma perseguição policial no bairro de Lavapiés. Sem dúvida, quem o matou foi um sistema de maltrato cotidiano que injeta todos os dias o medo, cerceia a felicidade e adoece, destruindo o direito humano à despreocupação, ao descanso e à serenidade, como explica Sarah Babiker.

Esse sistema de maltrato cotidiano – a lei dos estrangeiros, a desigualdade econômica, as batidas policiais etc. – é precisamente a “pedagogia da crueldade”. Mais do que perseguir objetivos específicos, como a erradicação do comércio ambulante, o que se busca é produzir insensibilidade: marcar e nos fazer ver o outro como outro, distinguir entre os afogados e os que estão salvos, entre os que estão dentro e os que estão fora, nos fazem cortar a empatia e toda a solidariedade possível.

Provocar uma guerra entre pobres, quando na verdade o coletivo de trabalhadores ambulantes é apenas o ponto mais extremo das tendências gerais de que hoje ninguém está a salvo: insegurança, vulnerabilidade e desamparo da vida.

Um dia depois da morte de Mame Mbeye, os discursos que foram improvisados ​​na concentração da praça Nelson Mandela de Lavapiés misturava a raiva digna (de uma morte intolerável) e as palavras que apelavam novamente à igualdade, à humanidade comum, à empatia. Contra o mandato da crueldade: não sentir, não sentir com os outros, não co-moverse.

Os oradores não falavam menos do que três idiomas (inglês, francês, espanhol), mostrando assim a potência que existe na vida migrante: a energia, as capacidades e os saberes que habitam aqueles corpos acostumados aos trajetos mais difíceis, à aprendizagem e à realfabetização constantes, à criação de redes de apoio e cumplicidade.

Eles não são apenas pobres ou vítimas que merecem nossa compaixão, mas neles habita uma grande riqueza, um grande potencial que nossa sociedade não conhece nem deseja acolher. Como lembrou Malick Gueye, porta-voz do sindicato dos trabalhadores ambulantes, Mame não era apenas um “camelô”, mas uma pessoa envolvida na luta pelos direitos sociais e um artista, à quem não foi autorizado praticar sua profissão na Espanha.

Lágrimas felizes

Confesso:

Me caíram lágrimas no 8M vendo logo no início da manhã um “piquete” de meninas menores de 16 anos (e meninos, na retaguarda) andando no meu bairro com jatos de energia e lucidez infinita em seus slogans.

Me caíram lágrimas ouvindo Patricia Ramírez pedindo às pessoas para que “tirassem a bruxa da cabeça” e lembrassem das “ações bonitas” que ocorreram durante a busca por Gabriel.

Me caíram lágrimas escutando os oradores da praça Nelson Mandela de Lavapiés apelarem, logo um dia depois da morte (morte política) de Mame, à humanidade compartilhada, à igualdade de todas as pessoas.

O filósofo e escritor George Bataille dizia que há “lágrimas felizes”. Não são exatamente lágrimas de alegria, mas de emoção por ver algo “milagroso” acontecer: imprevisível, inesperado, impensável, impossível mas verdadeiro.

É “milagroso” ouvir aqueles que sofreram um imenso dano falar em lutar por mais vida e não por mais morte, por mais humanidade e não por menos, por mais empatia e não por mais guerra de todos contra todos.

Que molhemos mais os olhos dessas lágrimas para despertar e reativar nossa pele endurecida pelo princípio da crueldade.

 

Obrigada Marga, Marta, Diego, Ema, Guille, Jabuti, Miriam, Juan, Leo pelas conversas.

Foto: Luis Gene (AFP)