por Andrea Roca e Rodrigo Millán [1]
Em uma das passagens de O torcicologologista, Excelência de Gonçalo M. Tavares, o leitor se defronta com a seguinte pergunta: 5 gramas de folhas brancas são equivalentes às 5 gramas que pesa a belíssima borboleta da Nova Guiné? Não. A beleza, argumenta-se, transbordaria a lógica da aritmética. No cerne da revolta do Chile neste histórico outubro de 2019, aqui, lembramo-nos de Tavares não para pensar na beleza e sim no seu adverso: o peso do horror.
A redemocratização chilena foi, entre tantas coisas, uma aritmética coletiva dolorosa. Aprendemos a contar em centenas, em milhares, as mulheres e homens torturados, desaparecidos e executados políticos. Em 1991, a Comissão da Verdade e Reconciliação trabalhou rapidamente na quantificação das vítimas da violação dos direitos humanos cometida pela ditadura cívico militar de Pinochet (1973-1990). Contas, aliás, não conclusivas por várias razões, entre elas, pela negação das Forças Armadas e da Ordem Pública de que existissem qualquer informação que contribuíssem à persecução criminal dos seus membros. Isso não deve ser uma surpresa, se considerarmos que o próprio ditador foi o Comandante em Chefe das Forças Armadas até 1998, e Senador da República até 2002.
Hoje, em outubro de 2019, às contagens funestas voltaram no Chile. Por decreto de Sebastián Piñera, o país viveu 10 dias sob Estado de Exceção Constitucional de Emergência. Isto, em resposta a onda de protestos e revoltas espalhadas na capital, e logo, no resto do território. A atuação das forças policiais e militares nesses dias, forçaram-nos a contar, mais uma vez, em centenas, em milhares. Conforme dados entregados pelo Instituto Nacional dos Diretos Humanos (INDH), no período de exceção, houve 1.132 civis hospitalizados. A associação dos oftalmologistas denunciou lesões oculares graves em 120 manifestantes. De outro lado, 3.200 pessoas foram presas pela polícia, das quais 340 eram crianças e adolescentes. As detenções em casos que ainda devem se contabilizar, incluíram golpes, sessões de tortura e de vexame sexual. A violência policial, conforme testemunham vários jovens, foi acompanhada de ameaças verbais que remetiam ao passado ditatorial: “Vamos fazer agora como antes fazíamos”. Por certo, a corporação defende-se das acusações: os abusos são exceções. O comandante geral de Carabineros de Chile, Mario Rozas, quando perguntado sobre os erros dos Carabineros nas últimas duas semanas, afirmou estar muito conforme com o trabalho realizado pelo corpo policial: sempre atento aos direitos humanos. Sobre o número de manifestantes vitimizados, na lógica do empate, o comandante enfatizou a cifra de 700 policiais e militares feridos. Nenhum deles, no entanto, em estado grave; nenhum deles, morto.
O terror, tal como a beleza, simplesmente, excede a aritmética. Os números higienizam demais, funcionam dentro de uma escala de normalização. Os números escondem os corpos. É no campo das imagens, onde desponta o peso neto do sofrido nestes dias. Centos de fotografias e vídeos que circulam nas redes sociais, vemos o sangue escorrer pelas pernas, costas e rostos. As selfies transformam-se em ferramenta, desta vez, não de vaidade e sim de denúncia: os jovens, hoje, caolhos, por culpa das balas de borracha, fotografam seus rostos mutilados e chamam a continuar a luta. No Facebook, circula o testemunho de um jovem universitário cujo anus foi despedaçado com um cassetete pela polícia. As armas ditas não letais, nestes dias, de revolta e crise, apresentadas como o que realmente são: artefatos de tormento.
Neste universo numérico fatídico, há ainda uma cifra mais discreta, que nem chega a uma dezena mas que releva o jogo completo. Tratam-se dos 5 manifestantes assassinados pela polícia e militares: Romario Veloz, Manuel Rebolledo, Alex Núñez, Kevin Gómez e José Miguel Uribe. Todos eles, jovens populares. Mesmo que a letalidade estatal pareça arbitrária, é seletiva. São os corpos dos pobres da cidade, seu alvo preferencial. Contudo, nestes 10 dias, inclusive, vimos a militares reprimindo inusitadas passeatas de jovens da elite em bairros nobres de Santiago solidarizando com as demandas por uma vida digna, o aumento do salário mínimo e o fim da ocupação militar. Esta repressão, sim, foi uma exceção.
Há outros números mais elusivos. O governo informou 10 pessoas achadas mortas em lojas e supermercados saqueados e logo, incendiados. Na região dos rumores, há suspeitas de que se tratariam de pessoas mortas e lançadas nos locais incendiados. Os laudos forenses e investigações deverão trazer luz sobre esses acontecimentos. Ainda, está a contagem mais imprecisa dos desaparecidos. O dia 28 de outubro, o INDH afirmou que das 72 denúncias de desaparecimentos, 68 delas já tinham sido resolvidas, logo que essas pessoas retornassem a suas casas. Ainda quatro pessoas permaneciam sem tomar contato com as suas famílias.
Os números revelam e ocultam a um só tempo. Nos primeiros dias, o governo informou publicamente as cifras de falecidos sem dizer os seus nomes. Isto, permaneceu assim por mais de três dias até que Piñera resolveu lamentar as mortes. A displicência dos governantes com respeito aos falecidos, foi respondida com força nas ruas: os nomes dos mortos disseminaram-se pelas paredes de Santiago e o resto do país. Os rostos dos jovens foram carregados em cartazes nos multitudinários protestos. Em ato de denúncia estético política, ativistas anônimos pigmentaram de vermelho as águas das fontes mais importantes da região central da cidade.
Os corpos, o campo da batalha que Sebastián Piñera deu inicio à noite da segunda-feira, 21 de outubro. Acompanhado do Ministro de Defesa, Alberto Espina, e do Comandante do Exército, Javier Iturriaga, em transmissão televisiva, declarou: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável […] disposto a queimar nossos hospitais, nossas estações do metrô, nossos supermercados, com o único propósito de produzir o maior dano possível a todos os chilenos”. A mensagem bélica foi respondida nas ruas: “Não estamos em guerra. Estamos unidos” – um dos tantos slogans que se multiplicaram nas manifestações e nos canais virtuais. Acerca da declaração de guerra, o pai de José Miguel Uribe, jovem de 25 anos, morto a tiros por militares em Curicó, pequena cidade de 100 mil habitantes localizada a 200 quilômetros ao sul de Santiago, culpava a Piñera. A declaração de guerra, abriu a margem de ação dos militares para o horror. “Eles andavam com uma panelinha, batendo uma panelinha, isso faziam, e os militares não acharam melhor coisa que matar a um moleque”, comentava com dor à imprensa. Mais de 10 mil pessoas saíram nessa cidade para exigir justiça para “El Chino”, como era chamado por seus amigos. Por certo, foi a maior mobilização de rua da história desse centro urbano.
Frente a violência policial e a vulneração dos direitos humanos, um grupo de deputados já deu início ao processo de acusação constitucional contra o mandatário e o ex-ministro do Interior, Andrés Chadwick, removido do seu cargo na passada segunda-feira, 28 de outubro. O domingo 27 de outubro, a aprovação de Piñera caiu a um 14% segundo a pesquisa Cadem, a cifra mais baixa a um mandatário desde o retorno da democracia. O governo decretou o fim do estado de exceção, essa mesma noite. A ONU celebrou a decisão, nos dias em que se prepara a visita de uma missão para os Diretos Humanos que permanecerá três semanas no país. A esse trabalho, soma-se a equipe de Anistia Internacional (AI) que já chegou no Chile. Rapidamente, declararam que as primeiras impressões eram desastrosas e davam conta de violações aos direitos humanos, com consequências traumatizantes para as vítimas diretas da violência, assim como para a sociedade no seu conjunto. O dia 30 de outubro, em um sentido diferente, o novo Intendente metropolitano, Felipe Guevara, afirmou que o primeiro direito humano era a segurança, qualificando os abusos policiais como simples fatos pontuais. A estratégia negacionista é seguida por alguns políticos e intelectuais de direita que afirmam que, na verdade, quem vulneraram os direitos humanos foram os baderneiros que destruíram e saquearam a cidade. De tal modo, tergiversam o sentido do conceito: denunciar os abusos e crimes dos agentes do Estado contra a população civil.
Entre todas estas cifras, encerramos com a cifra mais bela, até agora, da revolta. Na sexta-feira passada, 1,5 milhões de manifestantes reuniram-se em um dos pontos mais importantes de Santiago, a Plaza Italia, para exigir a saída dos militares, o fim do estado de exceção, uma nova constituição, e o direito a uma vida digna. Talvez seja a maior passeata da história do Chile, só comparável, em números, com algum dos grandes comícios antes do plebiscito de 1988. Experiência inédita para muitos de nós, não só pela escala e sim, pela intensidade e sentimento de comunhão na luta contra a desigualdade. Se bem as mobilizações de rua dificilmente consigam novamente essa quantidade de participantes, elas continuam e não há previsão de isto parar no imediato. No entanto, o Ministério Público chileno investiga 840 acusações por violações dos direitos humanos. A mesma instituição divulgou ontem uma lista com a identificação dos nomes de 22 dos 23 falecidos nas últimas semanas de estado de exceção e protesta social. Como voltar à pretendida normalidade?
[1] Andrea Roca é antropóloga pela Universidade do Chile e doutora em sociologia pela Universidade de São Paulo. Rodrigo Millán é sociólogo pela Universidade Católica do Chile e doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo.