Alana Moraes
texto apresentado no 12 congresso brasileiro de saúde coletiva, ABRASCO. Julho 2018*
Em um texto publicado no começo desse ano, o filósofo espanhol Amador Fernandez Savater nos lança uma pergunta que eu gostaria de retomar aqui. É possível ler a conjuntura política não simplesmente como uma disputa entre diferentes grupos pelo poder, mas como um choque entre diferentes percepções da vida social, entre diferentes sensibilidades da vida em comum? Eu faria apenas uma pequena alteração na pergunta porque penso que não se trata apenas de “percepções da vida social”, mas, radicalmente, diferentes modos de viver.
Como lembra um outro filósofo, o Agamben, “Nós vivemos depois da falência dos povos” e agora que ocidente também experimenta um modo particular de falir podemos, ao menos, nos deslocar para lugares dos escombros mais interessantes. Tentando caminhar com a pergunta do Amador, a hipótese que gostaríamos de abrir aqui é a de que levar à sério a crise em que vivemos é experimentar uma filosofia do fim do mundo. Essa hipótese nos exige arriscar um pensamento que possa convocar aqueles e aquelas contra os quais o capitalismo e o pensamento moderno vem erguendo cercas, fogueiras e tribunais desde o seu principio – aqueles e aquelas, portanto, que são os verdadeiros especialistas em fim de mundo (ampliando ainda mais a proposição do Viveiros de Castro): mulheres pobres, populações indígenas, o povo negro – aquelas e aqueles que tiverem seus mundos dilacerados materialmente mas também as suas cosmovisões variadas: xamãs, feiticeiras, curandeiras, rezadeiras, guerreiros, bruxas, tias, vizinhas – muitas versões do comum, de uma metafísica do sensível e de produções políticas assentadas em paradigmas do habitar uma vida, de insisti-la, e não governá-la.
Pensar com os especialistas do fim do mundo é também nos reconciliar com uma ecologia da prática. Não que acreditemos na separação entre pensamento e vida corpórea, entre fabulações e possibilidades de criação de infra-estruturas – como sempre quiseram nos convencer os modernos – mas é admitir, de uma vez por todas, que nossa guerra não é uma guerra de verdades (narrativas, discursos, mesmo de ideias), mas é uma guerra de corpos e afetos, o que passa entre eles, o que move e o que vincula – algo que Isabelle Stengers insiste quando fala que uma “ecologia das práticas” nos exige um senso de responsabilidade da qual a disputa de verdades nos permite escapar. Ela nos obriga a pensar a partir de situações específicas e agir como praticantes, não mais como mero “formuladores” cujos corpos não se implicam em nada.
O neoliberalismo, olhado a partir do ponto de vista das especialistas do fim de mundo, é apenas a última versão, bem atualizada, é verdade, da pulsão mais importante desse modo de produzir e governar (mas todos os usuários de máquinas sabem bem o quanto as atualizações são importantes!). A partir desses pontos de vista é possível compreender que o movimento majoritário e mais significativo ao longo do história desse sistema econômico não foi a “exploração da mão de obra assalariada”, mas foi a destruição de modos de vida e a expropriação das formas coletivas de cuidado e conhecimento. Os pontos de vista dos filósofos do fim do mundo, como no perspectivismo ameríndio, não equivalem a “visões” diferentes sobre determinado ponto – os sujeitos antecedendo a realidade – mas, ao contrário, são modos diversos de agenciamentos (humanos, não-humanos, outros) dessa realidade que constituem os sujeitos, muitos mundos incorporados e não apenas “percepções” desses mundos.
Segundo o filósofo xamã yanomami Davi Kopenawa o pensamento do branco atua como um espírito canibal, um espírito xawarari que se movimenta de forma epidêmica e descontrolada. Necropolítica, segundo Mbembe, não mais a biopolítica do delírio de fazer viver do Estado do bem estar social, mas uma declaração descarada e obscena do fazer morrer e, portanto, da produção continua de corpos matáveis e zonas de morte. O fazer-comum seria então a luta pela produção permanente de mundos não cercáveis, mas também o reconhecimento de que a prática de conhecer e de pensar são inseparáveis das múltiplas relações que tornam possível o mundo que estamos pensando, as vidas que estamos reconstruindo e celebrando. Cuidar e relacionar são práticas que nos parecem muito importantes aqui, mas quase sempre apagadas nos registros oficias da “luta de classes”. “Evitar a morte, a desordem e o sofrimento” e isso é o que nos une, fala Mauro Almeida.
Pra que os marxistas não fiquem muito bravos, eu venho pensando também como o próprio Marx foi marcado em seu pensamento pela força do comum diante do Estado – ele que também era um filósofo do fim de um mundo, ainda que seu otimismo com a noção de progresso tenha o afastado das epistemologias dos mundos despedaçados por algum tempo. Mas a intuição de Marx de que a luta de classes era também uma guerra entre mundos se expressa vivamente no modo pelo qual ele foi afetado com o problema do chamado roubo de lenhas, a luta de camponeses europeus empobrecidos pelo direito à ao uso comum da floresta, ao uso das lenhas que se tornaria crime, um arcabouço legal era então erguido para transformar em delito o que antes era a vida em comum. Marx toma parte da situação e com a inteligência própria daqueles que se deixam arrastar pela paixão das lutas, fabrica sua artimanha argumentativa: o movimento do capital se faz moribundo, se apropriando do que é comum. A propriedade estabiliza, ergue cercas contra os usos incertos, destrói a criação coletiva da auto-organização e o faz em nome do Estado. Transforma a natureza, os corpos e o conhecimento em “recursos”, o uso livre em “crime”.
Mas a revolta da comuna de Paris, o levante que levava o comum no nome, também transformou significativamente o pensamento de Marx – essa é uma história praticamente apagada pela ortodoxia marxista posterior (mas agora retomada por Jean Tible em seu Marx Selvagem, um Marx de retomada). Ao se deparar com o levante de Paris, Marx se deu conta que o conflito capital versus trabalho não se daria necessariamente nas fábricas, mas a revolta – protagonizada pelas mulheres e suas cozinhas coletivas, creches e barricadas que estavam defrontando-se com a degradação permanente de seus modos de vida – era tecida por paixões de outro tipo: o desejo de retomar a política para a vida, de organizar a própria vida e de resistir à expropriação da felicidade. “Não basta aos trabalhadores substituírem a gestão do Estado, é preciso destruí-lo”. Marx contra o Estado, vejam!
Marx-xamã nos brinda agora com um mundo outro, costurado por vários outros mundos e cantos de guerra. Seria possível pensar em um marxismo crítico da modernidade e seus aparelhos conceituais? Um Marx-do-comum, por tanto, que como a comuna de paris ou os sovietes, aldeias ou quilombos, pode pensar em uma prática de democracia na vida, pela diferença e o exercício coletivo da felicidade? Marx mesmo desconfia do pensamento ocidental, quando por diversas vezes, trata o capitalismo como um “mundo enfeitiçado”, abstrações e fetiches capitalistas atuando como feitiços do pensamento.
Não vou, eu própria, cometer a indecência de defender o Fim do Estado justo agora quando precisamos lutar com todas as forças contra todos os desmontes e conquistas. Mas uma boa filosofia de fim do mundo pode reconhecer confortavelmente hoje que o capitalismo não nos expropria apenas materialmente, mas também imaginativamente quando nos convence que todas essas experiências outras de organização da vida fazem parte de um passado e não mais de uma possibilidade latente. Quando nos convence que o SUS é apenas uma política de Estado e não uma prática coletiva de pensar os corpos e suas relações, o território e a proximidade da vida; Quando nos convence que a indústria farmacêutica é uma conquista civilizatória e não uma apropriação privada e rentista de modos coletivos de conhecer, de pesquisar e transmitir conhecimento sobre a vida;
Não se trata, portanto, de defendermos um comum contra o público, mas ampliar e democratizar o público vai depender de políticas que reconheçam o comum como a única saída possível para uma vitalidade democrática. Na última vez que frequentei uma ala psiquiátrica de um hospital público em São Paulo para acompanhar minha avó, naquele momento apresentando um quadro já avançado de Alzheimer, me dei conta que dentro daquele ambiente hospitalar havia uma ecologia muito heterogênea de conexões entre humanos, máquinas, entre gritos e conversas quase mudas, pessoas que dormiam, trocas de informação sobre os modos diversos de manifestação da doença, receitas caseiras que poderiam amenizar sintomas. Piadas sobre memória e esquecimentos. Havia muita gente, mais de 50 macas se avizinhando e nenhum médico presente, apenas uma enfermeira. Naquele momento me dei conta que eram as mulheres acompanhantes dos doentes que gestavam o cotidiano da ala: elas que ajudavam seus parentes e os parentes de outras a levantarem das macas, a caminharem um pouco pelo corredor, elas que supervisionavam os horários dos medicamentos e construíam uma comunidade de afetadas por aquela situação, se revezavam.
Outro bom exemplo da coexistência entre o público e o comum vem dos dias de visita nos presídios brasileiros. São as mulheres, companheiras e mães daqueles que estão nas penitenciarias que, semanalmente, garantem alguma dignidade para os encarcerados, uma vida possível de ser vivida, tratam doenças com receitas caseiras, oferecem alimentos que curam, denunciam os mal tratos, torturas e violência de todo tipo.
Podemos pensar também nas ocupações urbanas dos sem-teto nas periferias, atraindo pessoas que desejam acessar o direito à moradia, mas que acabam experimentando uma nova vida coletiva, a produção de uma outra temporalidade (experimentar o tempo livre outra vez!) onde se pode retomar o engajamento sobre si, contornar as paralisias e medos e tornar-se alguém que importa na produção de um comum. Uma vez ouvi uma mulher na ocupação explicando para uma outra que chegava o porquê de muita gente no entorno abandonar cachorros dentro de uma ocupação: “É porque eles sabem que aqui o cachorro vai viver!”. Vitapolítica contra a necropolítica se atualizando na prática constante de fazer alianças, inclusive inter-espécies.
Na verdade, podemos até nos perguntar se o “público” seria mesmo possível sem o comum. O que essas mulheres, filósofas de fim de mundos, nos oferecem enquanto paradigma, enquanto possibilidades epistemológicas de cura, é o que a antropóloga Annemarie Mol conseguiu bem captar em seu trabalho no qual ela opõe a lógica do cuidado contra a lógica da escolha.
A lógica da escolha é aquela que faz o médico apresentar um diagnóstico e falar: “agora você precisa escolher um tipo de medicação ou de tratamento”. Ela presume que a doença é algo estranho, uma zona sufocante na qual a gente só pode trabalhar no sentido de sua superação – e você estará, mais uma vez, irremediavelmente sozinha. Pensar pela lógica do cuidado, ao contrário, é pensar pela vulnerabilidade do corpo e criar uma zona de relação entre o cuidado e o cuidador, uma zona na qual podemos nos engajar juntos, com cumplicidade, onde podemos pensar pela especificidade da relação de cada doença com um determinado corpo. A lógica da escolha transforma a relação no par cliente-consumidor. A lógica do cuidado, desloca ambos os lados: pensar pela doença é deixar de se constituir como um “sujeito autônomo”, mas estar atento aos sinais do corpo, ao mundo, aos sonhos e intuições.
O paradigma da cidadania ocidental moderna é entendida como a capacidade das pessoas controlarem seus corpos – deixarem o corpo fora da arena publica e escolherem, continuamente, os melhores representantes. A concepção moderna (e mais hegemônica) de “política pública” também tem a ver com a crença nessa relação cidadão-cliente; indivíduo-beneficiário. Mas o corpo doente é incontrolável, ele é errático, ele necessita de cuidado permanente, ele necessita ser pensado permanentemente. Não se trata de uma servidão em relação à doença ou ao cuidador, mas sim de buscar uma heteronomia que potencialize outros vínculos e relações.
Por isso Annemarie Mol defende o paradigma do pacientismo, esse fabricado na lógica do cuidado, como fundador de uma outra hipótese democrática; é preciso se afinar com as escutas permanente do corpo; produzir aliança entre tecnologia e cuidado, compreender que esse sujeito autônomo cidadão masculino não existe por si só, ele é fruto de relações de cuidado, de uma rede de interdependência. O paradigma pacientista exige tempo livre e talvez seja essa a luta dos nossos tempos: a luta pelo próprio tempo. E não é desprezível o fato de que “ficar doente” tem sido uma prática constante de resistência ao capitalismo: além de romper com tempo do trabalho, a doença pode abrir um campo de relações outra vez – é a reconexão com um corpo, ainda que seja no terreno limite da vulnerabilidade. A luta de classes hoje poderia ser bem descrita pela luta daqueles que tempo contra aqueles que não tem; aqueles que podem pagar por curas e tratamentos contra aqueles e aquelas que insistem em criar relações de cuidado, transmitindo saberes ancestrais, mas também lutando para que o posto de saúde não desabe.
Por fim, pensar uma radicalização democrática passa por sabermos criar tecnologias de pertencimento. Para os indígenas a guerra e festa são duas dimensões básicas da vida porque justamente são aquelas onde é possível estabelecer alianças. “Não façam bebês, façam parentes!” é o slogan feminista de Donna Haraway que aposta na prática de alianças, o parentesco como um idioma vivo de conexão.
Não é à toa que tanto os evangélicos como os membros do PCC se chamem de “irmãos”, que as mulheres mais velhas nas periferias são chamadas de “tias”. Se o neoliberalismo age fundamentalmente esgarçando relações, rompendo relações, a prática do comum (e também o que é público democratizado) devem ser dimensões fundamentais de produção de tecnologia de pertencimento. Na cracolândia, muitas pesquisas vem apontando que 1/3 das pessoas que permanecem no fluxo não é usuário, mas gente à procura de conexões – egressos do sistema penal, pessoas com problemas de violências domésticas e de outro tipo. As filósofas do fim do mundo vem nos mostrando justamente que nossa política, à curto prazo, precisa ser aquela que possa reconstituir os refúgios.
Se fizéssemos um exercício de continuar simplificando os antagonismos dos nossos tempo, poderiamos dizer também que o Estado neoliberal é aquele que age rompendo e destruindo relações, enquanto o comum é a pratica permanente de conectar, de relacionar. Pra terminar, com mais uma filósofa do fim do mundo, eu gostaria de ecoar a frase da Bruna Silva, Mãe do Marcos Vinicius, o menino que foi assassinado na Maré quando ia para escola. Carregando para todos os lugares o uniforme manchado de sangue, Bruna tem repetido: “O Estado está doente” “O Estado levou meu filho”. Em uma conversa que tivemos, Bruna contava das profundas conexões que conseguiu estabelecer a partir desse sofrimento incontornável. “Encontrei a mãe de um policial que foi morto em uma operação. Nos abraçamos, choramos. Eu falei pra ela: o mesmo Estado que matou meu filho, matou o seu também”. Do mesmo modo Bruna fala do encontro que teve com a mãe de Marielle: “Sentimos que a filha dela agora está cuidando do meu filho lá no céu, e eu estou aqui agora cuidando dela”.
As mães que perdem seus filhos vitimas da violência policial tem fabricado um dos idiomas de conexão mais potentes dos nossos dias: “nossos mortos tem voz” elas repetem, narrando e atualizando permanentemente a memória dos seus filhos: o que faziam, que musica ouviam, o que gostavam de comer. Elas atuam justamente contra o apagamento do Estado, mostrando que os meninos na verdade são filhos, irmãos, são maridos, faziam parte de uma trama de relacionalidade que também é morta quando eles são mortos – elas são insistente conectoras, de imagens, de memórias, quase todas adoecem e evocam o mundo dos vivos e dos mortos para expressar sua luta por justiça. “Eu vou falar da minha luta, vou falar do meu filho, mas eu não vou chorar. Porque quando eu choro ninguém presta atenção no que eu falo”, insiste Bruna.
Nossa nova hipótese democrática vai precisar ser fabricada a partir dessas experiências que dilatam o que conhecemos como “política”, nos chamam para um mundo povoado de elementos não visíveis. Produzir resistências assim como um novo paradigma de direitos é, portanto, assumir que nossa guerra é também uma guerra de mundos, fazendo da nossa própria existência um campo de batalha. Silvia Cusicanqui, filósofa aimara cita o lênin quando ele diz que a gente precisa sonhar, mas com a condição de praticar nossos sonhos permanentemente, de não abandonar a realidade – nosso projeto de democracia radical deve conter Response-Ability, essa habilidade contínua de responder à situações e não á uma lógica abstrata e universal de emancipação.
Enfim, Nos reapropriar de nossa inteligência coletiva porque o pensamento branco, alerta Kopenawa, se esfumaçou e se fechou às outras coisas.
* esse texto é fruto de trocas e reflexões compartilhadas nesses últimos tempos com Herique Parra, Adriana Viana, Ricardo Teixeira, Jean Tible, Bárbara Lopes, Fábio Zuker, Gabriela Acerbi, Débora Del Guerra, Pedro Ekman, Paula Ordonhes, Julia Ruiz e muitas outras.
Foto de capa: apresentação de rua do Ilú Oba de Mim
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