A caixa 623 e os estados de exceção

por Edson Teles

Se há um acontecimento síntese dos processos de produção de subjetivação política acerca dos anos de repressão ditatorial no Brasil poderíamos dizer que ele é a experiência da Vala Clandestina de Perus. Polifônico e multifuncional, ao se fazer carne, ao se tornar discurso e ao assumir as funções do medo e da explicação histórica universal, acionou e aciona até hoje mecanismos de dominação e resistência.

Foi no dia 04 de setembro de 1990 que, após trabalho de pesquisa do jornalista Caco Barcelos e da luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura, a prefeitura de São Paulo decidiu escavar o local onde estariam dezenas de ossadas de indigentes, mortos e desaparecidos políticos e vítimas fatais da polícia durante os anos 70. O resultado foi impactante: sacos contendo ossadas de 1.049 indivíduos e mais outras centenas de corpos misturados por terem tido seus sacos abertos e danificados. A partir desta data se instituía a Vala de Perus, originariamente alocada no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Tal fato ocorreu durante o governo da prefeita Luiza Erundina. Acontecimento que poderia deslocar placas tectônicas da memória política, pois as vidas da militância clandestina de resistência se tornariam públicas.

Passados quase 28 anos, e após um degradante périplo por instituições do Estado, finalmente foi feito o reconhecimento de que a ossada da caixa 623 contém os restos mortais de Dimas Antônio Casemiro (1946-1971*2018). Nascido em Votuporanga, interior de São Paulo, no dia 06 de março de 1946, foi assassinado em abril de 1971, após ser preso pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo), fato ocorrido, segundo a Comissão Nacional da Verdade, sob a responsabilidade do delegado Alcides Cintra Bueno Filho.

Na biopolítica latino americana, além das características apontadas pelo filósofo Michel Foucault se apresentarem misturadas, as do “fazer e deixar viver e morrer”, somaríamos a prática do “fazer desaparecer”. Por isto, as instituições das democracias herdeiras de regimes autoritários no continente deveriam adotar a marcação acima, com os anos de nascimento e morte e o de identificação do corpo desaparecido.

Os vários lugares por onde passaram as ossadas indicaram a relação entre as memórias da ditadura e a ausência topológica ou o uso espacial do caráter político das lembranças e dos esquecimentos no Estado de Direito.

De Perus para a Unicamp. De lá para o Cemitério do Araçá, algumas ossadas para o IML de São Paulo, outras para o Ministério Público. Algumas voltaram para o Cemitério. Mais tarde, boa parte foi para a Unifesp.

Foram tantas as instâncias, institucionalizações, relatórios apresentados e outros nunca feitos, ofícios, burocracias. Foram várias as reuniões com representantes de direitos, dos militares, da governabilidade. Lugares sem fim, múltiplos espaços, tantas operações de controle quanto as possibilidades de abertura.

E eis que em fevereiro de 2018, o Grupo de Trabalho de Perus (GTP), localizado no Centro de Antropologia e Arquelogia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), confirmou a identificação de Dimas. Lá se encontram as caixas contendo as ossadas de Perus. Estas ossadas ressurgirem identificadas aparece como uma prova contundente do modo de operação e da ideologia de descarte das vidas que o Estado considera desmerecedoras de viver. Coloca em evidência um modelo militarizado de segurança pública ainda vigente.

Da morte à abertura da Vala, passando pelo DOPS, talvez no Doi-Codi do Exército e nas várias salas de tortura para as quais as “forças da segurança e da ordem” levavam os oposicionistas, foram 19 anos. Mais os 28 para finalmente se fazer a identificação temos 47 anos. Ao ser assassinado, Dimas tinha 25 anos. Quase o dobro de tempo da sua vida para a finalização da morte. Se é que podemos dizer que esteja finalizado. Afinal, não sabemos ao certo como, onde, quais os responsáveis pelo crime cometido.

A Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) não foi até as profundezas do mecanismo de triturar corpos da ditadura para desvendar os detalhes do que ocorreu com Dimas. Não identificou qualquer desaparecido. Em termos de história praticamente compilou o que já se sabia.

Então, por que o general chefe do Exército brasileiro, Eduardo Villas Bôas, neste mesmo mês de fevereiro de 2018, dispara uma reclamação-ameaça à sociedade avisando que esta instituição não deseja uma outra comissão da verdade? O que significa esta tática em meio à intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro?

Trata-se, ao que parece, da posse de poderes de vida e morte sobre a população. Como disse o mesmo general, o “risco sempre existe” de se atingir pessoas que não tenham relação com crimes. E para que serve a comissão da verdade? Apurar as violações da dignidade humana, em especial, na experiência brasileira, a tortura, o assassinato e o desaparecimento por parte de agentes do Estado.

Então, exigir que não se tenha outra comissão é mais ou menos como dizer que se quer uma anistia antes de cometer a violação de direitos. O modelo do Exército atual é parecido com o da ditadura. Em dezembro de 1968, 50 anos atrás, a ditadura decretou por meio do artigo 11 do Ato Institucional número 5 (AI-5), uma auto-anistia: “excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos”.

Como nos anos da ditadura, o Exército quer a anistia antes mesmo de começar a violar direitos. Ao expor o desejo de se salvaguardarem de outra comissão da verdade (ninguém pode hoje garantir que uma próxima comissão seria somente 40 ou 50 anos após os fatos), o general expõe as formas de uma segurança pública militarizada: a guerra contra o inimigo interno, o povo pobre, negro, ativista, jovens que usam vinagre contra os efeitos de bombas de gás, coletivos espontâneos que tomam avenidas em revolta devido a mais um assassinato cometido por policiais etc.

A intervenção militar expõe algumas características que diferenciam os estados de exceção vividos no Brasil desde sua redemocratização nos anos 80 em relação à ditadura. E situações que modelam no Brasil uma vida e uma política militarizadas.

A primeira característica se refere ao território. Na ditadura a intervenção era em todo o espaço nacional, centralizado, imposto unicamente por armas e sem a necessidade de justificativas. Hoje, os estados de exceção ocorrem em territórios menores, espécies de campos de refugiados que exigiriam uma medida de força e justificado pela necessidade de restabelecer a ordem evitando o pior.

A segunda característica própria dos estados de exceção no atual estado de direito é a existência de fendas na ordem jurídica. Aciona-se medidas de exceção a partir de mecanismos jurídicos, como a intervenção em curso, mas que não são (porque não é possível ser) regulamentados sobre seu uso. Não há como prever, na letra da lei, o que fazer se não se tem de antemão as circunstâncias que demandam a exceção. A Constituição criou os instrumentos de acionamento da medida de emergência, mas não sabe como será executada. Desta forma, são várias as pressões de militares pela liberação da violação de direitos civis básicos sob a justificativa de que se faz necessário para enfrentar “traficantes armados”. Afinal, como disse o general-interventor Braga Netto, o “Rio é um laboratório para o Brasil”.

A terceira grande característica dos estados de exceção é seu regime de produção. São décadas de má gestão da segurança pública e de opção pela estratégia do inimigo a ser combatido por táticas militarizadas e em situação de guerra. O resultado, do ponto de vista do cotidiano das populações, é desastroso. Só produziu mais violência e criou territórios nos quais o ser humano passou a ser tratado indignamente. Por exemplo, a cracolândia, os presídios, as favelas nos morros cariocas, as ocupações de movimentos de luta por moradia. Nestes espaços, o Estado (ou forças parceiras dele) é solicitado a agir com desmesura, o tanto quanto estes territórios “anômicos” se encontram “fora da ordem”. A grande questão é: quem produziu estes “campos” apropriados para sofrer a intervenção são os que estão à frente da gestão da vida. Os que governam produzem os territórios que serão alvo da exceção.

Se as hipóteses acima sobre os estados de exceção estiverem corretas poderíamos dizer que acontecimentos como a intervenção, o golpe de 2016, as chacinas nos presídios, a destruição dos direitos, entre outros, já vêm sendo gestados faz anos. A finalização destes eventos nas tragédias já conhecidas começou com a ampla produção de territórios próprios para a demanda de medidas “duras”. Mas isto não quer dizer que há um projeto político conservador em ação, ou que a ditadura não foi derrotada e permanece nas instituições do Estado. Não. Parece-me que são estratégias de governo, que funcionam em amplas redes, as quais se utilizam dos equipamentos estatais, mas também de formas de organização social e do cotidiano. Lá no bairro em que vivemos, no comércio, no transporte público. Nas várias localidades onde as relações sociais reproduzem os bloqueios de desejos outros que não os das ordens vigentes, onde se dilatam as técnicas racistas, machistas e genocidas.

A caixa 623 tem nome, história, desejos. Dentro dela habitam os negros, as mulheres, os índios, os homoafetivos, o militante político, as subjetividades atípicas.

Dimas Antônio Casemiro, presente. Hoje e sempre!