por Alana Moraes
publicado na Revista DR em: http://www.revistadr.com.br/posts/ocupar-fazer-funcionar-e-escapar-pensar-com-as-mulheres-sem-teto
As ocupações urbanas do MTST (movimento dos trabalhadores sem-teto) espalham-se hoje como rios insistentes nas brechas metropolitanas de São Paulo. Rios de crise, despejos, histórias de migrações, novos encontros. A nova ocupação em São Bernardo do Campo já reúne mais de 6 mil famílias. As barracas de lona traçam um novo desenho na paisagem urbana: vistos do alto, os pontos coloridos fazem linhas que quase sempre escapam de uma reta. O terreno vazio pertence à uma incorporadora e espera pacientemente, especulando, inventando valor. Ao lado, a fábrica da Scania. A mesma fábrica que, em 1978, era palco de uma grande greve de trabalhadores que mudaria a história do país – alguns dizem que foi o começo do fim da ditadura militar. Dois ciclos de luta, lado a lado, produzem a imagem perfeita de dois tempos históricos e suas aflições.
Em 1978, a luta do chamado “novo sindicalismo” acontecia no coração da fábrica e ameaçava o ciclo de acumulação do capital bem ali na linha de montagem. Produzia um ruído que foi capaz de desestabilizar os consensos do regime militar e seus dispositivos autoritários. Em 2017, as ocupações urbanas nos apresentam essa cidade industrial despedaçada. O sonho da sociedade salarial mal havia começado. Tempos de “desmanche”, “reestruturação produtiva” o “trabalho perde a centralidade”, dizem alguns sociólogos. Mas que trabalho é esse que perde a centralidade?
Em 1978, era o trabalho da produção que constituía-se como estratégico na luta contra o capital. Em 2017, as ocupações se erguem, no entanto, com o trabalho sempre invisível da reprodução da vida. Em 1978, era o capital produtivo dando as cartas. Em 2017 é o capital financeirizado, aquele que habita o vazio do terreno e que escapa para todas as dimensões da vida nos fazendo sujeitos endividados. Com a reestruturação da produção e os deslocamentos na relação capital-trabalho, a reprodução da vida nos parece hoje nosso campo de batalha, nossa última trincheira. Entre o capital financeirizado e o trabalho reprodutivo um novo campo de conflitualidade que se faz, muitas vezes, nos registros invisíveis do valor.
A ocupação é o nosso começo de mundo e só é possível existir por conta daqueles trabalhos domésticos que sempre fizemos nas sombras: cozinhar, limpar, cuidar uns dos outros. O trabalho está aí, sempre esteve: não remunerado, exilado das zonas de importância da luta de classes. Mas não só isso. Nas ocupações, é preciso também um constante esforço de produção de relações, manutenção de vínculos, fabricação de pertencimentos, escutas. “Na ocupação, pela primeira vez me fizeram um bolo de aniversário”, me disse uma vez um homem quando conversávamos sobre sua vida. Quando não há mais nada: salário, emprego, hospitais públicos, o que fica somos nós, mulheres. O mundo da reprodução da vida é esse que vemos entre barracas e cozinhas coletivas. É o primeiro café feito na cozinha de lona que anuncia o momento de inauguração de uma nova ocupação: vemos a cozinha contra a propriedade privada.
Ao contrário do que acontece no espaço doméstico, nas ocupações, a cozinha coletiva é um espaço de poder feminino: onde também circulam informações, reputações, onde se fortalecem as relações, onde é possível falar sobre o sofrimento ou sobre sexo ao mesmo tempo em que se faz o refogado do arroz. “Isso aqui me curou, antes era eu sozinha”, dizem muitas vezes as mulheres. A solidão das mulheres negras é ali também ocupada. São elas, quase sempre, as principais lideranças das ocupações. “Maria do ABC” é como é conhecida a Maria das Dores, uma das militantes da ocupação de São Bernardo. Mulher negra, forte, me disse uma vez: “Minha filha, o que tem que ter mesmo é coragem”. Muitas mulheres se separam quando encontram-se muito envolvidas no cotidiano da ocupação: “ou a ocupação ou ele, foi o que ele me disse. Eu escolhi a ocupação”.
Toda ocupação urbana cria uma poética da precariedade que longe de romantizar ou domesticar a pobreza afirma a possibilidade política de uma existência intrinsecamente relacional. Cuidar e relacionar. Produzir infraestruturas coletivas que funcionem para a manutenção da vida fora do espaço doméstico e suas obrigações. Espaços de cuidado das crianças, limpar, lavar – nas ocupações esses espaços constituem-se como parte central da existência política do território, sem eles nada acontece.
Frequentemente as lideranças das ocupações são também excelentes cozinheiras, as “Tias”. A cozinha é o lugar por excelência de um pensamento prático, experimental e é também o que move todo o trabalho coletivo necessário para a manutenção e construção dos barracões. Nos mutirões de trabalho, as pausas são sempre ao redor da cozinha, nas refeições compartilhadas, no bolo do final da tarde, nos cafés e as conversas que ali acontecem. “Antes nada que a gente fazia tinha importância. Aqui tem, sabe?”, me conta Tia Angélica. As cozinhas e também todos os espaços e momentos de cuidado em uma ocupação nos obrigam a pensar em uma dimensão fundamental da política: as tecnologias práticas de pertencimento. Cuidar das relações, estar implicado em obrigações cotidianas do viver junto. As “Tias” das ocupações organizam assembleias, cozinham, se importam, ligam para aqueles e aquelas que se ausentam – aqui os novos parentescos criados por elas funcionam como idiomas de conexão. “Eu sempre chegava mais tarde na ocupação, porque estava fazendo faculdade. Chegava na ocupação meia-noite e a cozinha já estava fechada, mas a Tia Cida deixava uma marmitinha pra mim e eu ficava muito emocionada com isso, nunca vou esquecer. É um amor que eu nunca vi”, contava Débora.
A divisão sexual do trabalho se mantém mais ou menos definida nas ocupações. “Os homens não podem ficar na cozinha, só atrapalham!”, dizem as mulheres. As tarefas masculinas tem a ver com a construção e manutenção dos espaços coletivos, com o funcionamento da água e da energia elétrica, com a segurança de todos. O capitalismo não inventou a divisão sexual do trabalho, mas o que fez o trabalho assalariado e a expropriação dos modos coletivos de reprodução da vida foi instaurar uma hierarquia definitiva entre trabalho pago (produtivo) e trabalho não pago (reprodutivo). Nas ocupações vemos operar a divisão sexual do trabalho, no entanto, todos os trabalhos não são pagos e funcionam a partir de outras dinâmicas que tem a ver com implicações, responsabilidades e prestígios. Nesse outro regime de organização da vida coletiva, o trabalho feminino aparece em toda sua importância. A cozinha é um espaço privilegiado de feitura de lideranças. A política e a vida encontram-se confundidas. “Aqui está o povo sem medo de lutar!” anuncia o canto coletivo. Sem medo porque experimenta a possibilidade de outra vida.
Na fábrica, o trabalhador assalariado que produz mercadoria aparecia aos olhos da sociedade capitalista envolto em uma ilusão de que a “força de trabalho” estava sempre “pronta”. Nas ocupações, ao contrário, vivemos a experiência da feitura cotidiana de nós mesmos. Não só alimentação, limpeza, cuidados básicos mas é também nesse espaço em que se vive coletivamente a busca por problemas comuns que antes eram ilhados no espaço doméstico: sofrimentos, violência sexista, problemas com o álcool, desemprego. As relações vinculadas à reprodução da vida revelam de maneira brutal que a precariedade corpórea, quando expostas em um território político, nos obriga a pensar pela interdependência. Uma outra imagem: em uma ocupação da Zona Leste, a cozinha principal tem como paredes antigos quadros de organização de uma linha de montagem fabril que foram reaproveitados e transformados em matéria prima de construção. Dois registros de mundos, o da fábrica e o da ocupação que encontram na cozinha a referência mais constante dessa feitura coletiva.
Trata-se de pensar, em nossa opinião, esses saberes e capacidades, os quais, segundo Raquel Gutiérrez, são fundamentais para a produção dos momentos mais visíveis do antagonismo social, as tramas que geram mundos. De um terreno baldio, emerge uma ecologia de práticas que pode fazer funcionar a vida em comum, restituir capacidades. “Agora não tenho mais medo” é uma frase que sempre ecoa nos relatos.
O que as ocupações produzem, além de novas relações é uma zona de tempo livre. Não mais o tempo livre produzido pelo desemprego, pela incessante busca da sobrevivência, o tempo livre entre as virações que, de algum modo, é sempre um tempo livre suspenso pela angústia do fracasso, pela instabilidade. O tempo livre das ocupações é preenchido por atividades, engajamentos, festas, assembleias, conversas, fofocas – é um tempo livre mas que, no entanto, produz uma multiplicidade de sentidos que garantem a própria vida. Estar implicado em uma tarefa do cotidiano é tornar-se alguém que importa. “Na igreja a gente se acalma, conversa com Deus, mas aqui a gente pratica o tempo todo”
Não é por acaso o fato de muitas lutas hoje no mundo assumirem a “forma-ocupação” como forma privilegiada de enfrentamento e resistência. O que se realiza nessa forma de luta é, entre outras coisas, a coletivização das formas de reprodução antes encerradas nos contornos da domesticidade: alimentação, limpeza, formas diversas de cuidados. É uma “forma” de luta que, do ponto de vista do repertório, desloca para o centro da coletividade a questão primordial da reprodução: como manter a vida possível? Trata-se mesmo, e assim observamos nas ocupações, de uma “domesticação” da política, na qual a mobilização coletiva só é possível a partir de uma linguagem doméstica da reprodução da vida e cuidado com as relações.
Como gosta de lembrar o antropólogo David Graeber, a “maldição” da classe trabalhadora é “se importar demais” . Para ele, a “classe trabalhadora” nunca foi majoritariamente a classe operária fabril. A experiência de classe mais compartilhada no tempo é o cuidado. A classe trabalhadora é a “classe que cuida”, aquela que sempre se ocupou dos trabalhos de cuidados dos outros: alimentação, limpeza, cuidados com velhos e crianças, cuidados da saúde, segurança etc. No caso das mulheres, o “se importar” demais adquire, obviamente, uma dimensão muito mais constitutiva de experiência. As mulheres das ocupações são empregadas domésticas, faxineiras, diaristas, cuidadoras, cozinheiras. A classe que cuida é também aquela que nos interpela sobre a potência de pensar a política pela cozinha. Nos parece, portanto, incontornável do ponto de vista de qualquer análise sobre a nova configuração de classes na sociedade brasileira contemporânea compreender os modos de produção política, em todos os seus atravessamentos, desse sujeito que emerge em um dos maiores movimentos urbanos do Brasil de maneira definitiva: a mulher negra, trabalhadora doméstica, periférica e evangélica. “Firme e forte que nem mulher do norte!”, como muitos dizem em forma de saudação nas ocupações.
As ocupações nos mostram que se de fato há uma crise do emprego e do trabalho assalariado, por outro lado, existem já outros caminhos sendo experimentados. O trabalho da reprodução da vida, o trabalho não pago, os cuidados e toda uma ecologia de práticas que só podem funcionar na interdependência de novas relações, no trabalho constante de produzir implicações e pertencimentos. Essa outra politicidade, uma política no feminino, revela o problema da própria manutenção da vida, dos vínculos e dos cuidados como eixos centrais da mobilização e ação coletiva. Talvez a “forma perdida” da classe esteja, mais do que nunca, no trabalho da reprodução e na tarefa de tecer as relações que possam nos mover de forma mais eficaz.