Por Emiliano Teran Mantovani
(tradução Giovanna Marra)
“…se as medidas excepcionais são o fruto dos períodos de crise política e, enquanto tais, estão compreendidas no terreno político e não no terreno jurídico constitucional, elas se encontram na paradoxal situação de serem medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito, e o estado de exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.
Giorgio Agamben
O Grande Tabuleiro Mundial se requenta. O conflito social está se propagando por toda a moldura do sistema-mundo, produto não só das extraordinárias desigualdades socioeconômicas e da devastação de fontes de vida e territórios, senão também da terrível vulnerabilização que se provocou sobre os tecidos sociais nesses mais de 30 anos de neoliberalismo global. Como sintoma e consequência destes processos, direitas e extremas direitas ganham cada vez mais terreno em numerosas partes do planeta.
Na América Latina, as entusiasmantes ilusões emancipatórias que se propagavam durante o auge dos governos progressistas estão sendo desfeitas por um horizonte de resistências, agora basicamente a partir da perspectiva das organizações populares de base e movimentos sociais. Se trata de um horizonte mais incerto, mas necessariamente mais combativo.
Este panorama para América Latina não deve ser simplesmente interpretado como uma potencial “volta ao passado”, como um regresso na linha do tempo à 1990. Importantes transformações ocorreram na região, suficientes para afirmar que já nada será igual por aqui. Deve-se olhar adiante advertindo não só tendências histórico-estruturais senão também identificado as marcas sui generis do tempo em que vivemos.
A crise civilizatória parece prefigurar uma geopolítica do caos, onde também opera uma estratégia do contingente, do instável, que por ser mais versátil, flexível, aberta e descentralizada não deixa de ser violenta e profundamente reacionária – por exemplo, a chamada “Doutrina Obama” esteve marcada por essas marcas [1]. Neste marco, é fundamental ressaltar os elementos:
- alguns mecanismos tradicionais de intermediação com o econômico (como os estados de bem-estar e políticas de assistência social massiva) e com o político (como os sistemas de partidos e instituições eleitorais, marcos jurídicos de direitos civis) parecem estar em processo de franco esgotamento histórico, seja porque sua legitimidade social está minada, porque não podem sustentar-se no tempo ou porque representam um obstáculo frente a necessidade que tem o capital de um ajuste radical. Portanto, este aponta à processos massivos e intensivos de apropriação direta da riqueza e do trabalho, sem intermediação nem negociação nem sedução, principalmente no Sul Global, mas avançando também no Norte. Nesse sentido, a guerra deixa de ser somente acontecimento histórico e vai se constituindo como exercício permanente de micro-política e como referente dos regimes de poder e dos estados de direito.
- mas a apropriação direta não supõe necessariamente uma atuação imperial na forma de um rolo compressor, senão baseada em estratégias diferenciadas que permitam sustentar ao máximo possível os processos de acumulação, os mercados e a circulação de capital. A isso poderíamos chamar uma política do cinismo: a combinação de retalhos de assistência social, regionalizações de consumo, zonas de “paz” com estados de guerra territorial, estados de exceção seletivos, configuração de democracias sitiadas, regimes de poder regional paraestatais, entre outros, que vão se desenvolvendo dependendo de fatores de conjuntura e as diversas reações sociopolíticas que provocam.
A partir da análise geopolítica do discurso oficial progressista latino-americano, se promoveu a total centralidade da contradição Império vs Nação-periferia (basicamente EUA vs os governos progressistas), interrompendo uma análise de multi-escalas e deixando engavetadas as próprias contradições domésticas Estado-Governo – território/população.
Ao mesmo tempo, se impulsionou uma prevalência do império-acontecimento (por exemplo, para o casa da Venezuela, uma eventual intervenção militar norte-americana) deixando de lado o império-processo, o qual expressa os múltiplos mecanismos de penetração e transformação desde dentro das tramas sociais, das forças contra hegemônicas, das facetas desafiantes dos regimes políticos nacionais, com o fim de ir prejudicando e mudando-os para facilitar a acumulação de capital e a apropriação de recursos e trabalho. Essa forma de intervenção pode conseguir o desmantelamento e a desativação progressiva de um processo contra-hegemônico de mudança, ainda que na superfície dado regime político busque manter uma fachada popular-emancipatória. Nesse sentido, é vital ressaltar a contradição Império-território/população.
Esta análise integrada macro-micro-político, de múltiplas escalas espaciais, esta fenomenologia do imperialismo, é útil ao menos por duas razões:
Primeiro, fatores como o caos global e os altos níveis de incertezas, risco e volatilidade sistêmica, nos quais muitas das macro-instituições tradicionais são cada vez menos funcionais e se requer de ação direta; a lógica de penetração total do neoliberalismo a escala planetária; a potencial desregulação ou mutação dos Estados latino-americanos frente esta nova etapa; a vulnerabilidade de povos e comunidades frente esta situação; a disputa geopolítica pelos recursos naturais; entre outros, ressaltam a especial importância do foco sobre a dinâmica nos territórios. Uma estratégia de apropriação direta supõe analisar mais de perto o que ocorre nos mesmos, e nos tecidos sociais, onde se estão desenvolvendo vitais disputas pela vida a escala global.
Segundo, dita análise poderia contribuir a fazer visíveis os diferentes atores envolvidos nas intervenções que o capital transnacional impulsiona, e que são canalizadas em escalas globais, regionais, nacionais e locais. Permite destacar as operaçòes de interface geográfico mediante as quais opera o capital para finalmente chegar ao tecido da vida socioecológica. Dessa forma, por exemplo, é possível ressaltar a relação orgânica, ainda que não necessariamente explícita, que tem o extrativismo com estas formas de operação imperial.
Nas disputas geopolíticas e nacionais nesses novos tempos para a América Latina, não só se abriu o cenário para a aparição de governos favoráveis a um ou outro bloco global de poder, senão também a configuração de novas e complexas “governamentalidades” (Foucault) nos territórios e os tecidos da vida. Controlar e administrar o caos, assim como aproveitar e canalizar as mudanças essenciais que se produziram nos tecidos socioterritoriais, parece ser um objetivo central nessas disputas pelo mandato político. Convém avaliar pois, o terreno espinhoso onde se estão desenvolvendo as lutas atuais e as que virão.
O terreno espinhoso de lutas por vir: reconfigurações nas entranhas da América Latina
O ciclo progressista latino-americano que parece se concluir, e que teve impactos diretos e indiretos em toda a região, pode ser também lido como uma nova onda modernizadora para a região, impulsionada não só pelo boom dos commodities que iniciara na década passada, senão também por ampliações e novos dispositivos na distribuição social dos excedentes captados nesse processo.
Colocar que América Latina já não será igual supõe reconhecer que esta onda modernizadora gerou importantes transformações nas molduras sociais; nos territórios urbanos, camponês e indígenas; em suas estruturas políticas – o que inclui as formas de exercício do poder e as lutas populares -; nas expectativas e padrões culturais; e nos metabolismos sociais; o qual tem e terá notáveis efeitos para toda a vida na região.
Se bem variam em diversos graus e não operam de maneira absoluta, nos diferentes países latino-americanos é possível verificar algumas tendências compartilhadas tais como:
. Crescimento dos processos de urbanização, modernização territorial e da população dentro das cidades, com tendências persistentes ao incremento para os próximos anos [2].
. Caotização e vulnerabilidade das cidades – recorde-se por exemplo, a crise hídrica em São Paulo desde 2014 ou as inundações em Buenos Aires em 2013. Expectativas de “modos de vida imperial” (U. Brand) em cada vez mais gente, o que está se unindo contraditoriamente com a atual situação de queda dos preços dos commodities.
. Avanço da fronteira extrativa em toda a região. Relançamento e expansão em grande escala em setores do extrativismo que não foram os tradicionais para cada país, como o caso da mineradora na Venezuela ou Equador, ou o petróleo no Brasil. Avanço dos extrativismos de alto risco por meio do impulso de exploração de hidrocarbonetos não convencionais, tais como a perfuração e fracking na jazida de Vaca Muerta, Argentina; ou os crudes pesados e extrapesados na Colômbia e Venezuela [3].
. Crescimento nos metabolismos sociais (fluxos de materiais, energia e água), que ainda que em termos relativos (taxas de crescimento, fluxos per capita, etc.) poderiam diminuir em relação a décadas passadas, mostram notáveis tendências ao aumento em termos absolutos [4]. Isto ocorre não somente nas cidades, onde uma porção das populações foram incorporadas ao consumo de mais energia, materiais e água, senão também a raiz da expansão do extrativismo nos territórios da região.
. Sistemas sociais mais complexos. Incorporação massiva de setores das classes pobres às classes médias [5]. Estratificações sociais mais heterogêneas e híbridas – por exemplo, bairros populares nos quais convivem diferentes “classes” sociais. Novas subjetividades nos jovens que adotam uma atitude frente a política e fazem um importante papel no desenvolvimento deste fim de ciclo.
. Em alguns países se produziu o surgimento de novas burguesias, no seio dos processos de acumulação de capital impulsionados direta ou indiretamente pelas políticas dos governos, como no caso dos progressismos radicais da Venezuela e Bolívia – “Boliburguesia” e “Burguesia Aymara”, respectivamente.
. Financeirização das classes populares e robustecimento qualitativo das economias informais. A pesar de que em vários países da região cresceu o emprego formal na última década – como na Argentina, Brasil e Chile -, devido às características dos modelos primários da região, o setor informal segue sendo muito significativo – uma média de 50% do total, sendo que em países como Paraguai, Colômbia, México, Guatemala ou Peru, se supera notavelmente esta cifra [6]. O processo de financeirização social lhe deu maior organicidade à economia informal e fortalece em termos qualitativos, na medida em que vigora suas redes, potencializadas pelo alto consumo. Poderíamos dizer que se socializou o setor terciário da economia, potencializando uma maior autonomização do setor informal. À raiz do fim do boom das commodities e uma re-explosão da economia informal. O que acontece quando a informalidade passa a ser um determinante de toda a economia e dos tecidos sociais?
. Em diversos graus, dependendo dos territórios e países, as estruturas socioeconômicas e culturais dos povos indígenas e camponeses foram impactadas. Novas ruralidades e novas configurações no mundo indígena foram se desenvolvendo, com consequências a respeito da preservação de seus territórios, seus modos de vida, suas resistências e seus padrões culturais.
. Surgimento de novas direitas, que assumem narrativas, projetos mais híbridos e flexíveis, com novos rostos, os quais buscam capitalizar as numerosas mudanças sociais, culturais e políticas da região. A crise dos progressismos reabriu o caminho a um potencial desprestígio dos ideais revolucionários e socialistas em amplos setores da população, com maior força na Venezuela.
. Grupos de delinquência social, urbanos e rurais, que se transformaram a formas muito mais sofisticadas de ação, com maior capacidade de fogo e tecnológica, e com maior consciência de seu poder político, principalmente nos territórios que conseguem controlar.
. Afirmação do que chamamos de um “neoliberalismo mutante” [7], o qual se configurou como um modo heterodoxo, híbrido, estratégico e flexível de acumulação de capital que muda, se reacomoda permanentemente, e no qual podem coexistir, por exemplo, mercantilização sem privatização ou financeirização com intervenção estatal, sem que isto implique o abandono de uma eventual guinada à ortodoxia ou ao horizonte de desapropriação massiva que o constitui.
. Penetração múltipla das economias latino-americanas por diversos atores geopolíticos, onde teve crescente presença China e em menor medida os outros países dos BRICS. Destacam os nexos do gigante asiático com Venezuela, Equador, Brasil, Peru e Argentina [8]. Relativo deslocamento da hegemonia dos EUA. Brasil incrementou sua influência geopolítica, ressaltando seu papel na América do Sul. Em geral, o fim do ciclo está também marcado por uma espécie de guerra fria que se desenvolve a nível mundial.
. Vivemos em um mundo ainda mais convulsionado que quando começou este período de perfil progressista.
Sobre a superfície acidentada, móvel, irregular e volátil desta geografia política das muito diversas molduras sociais latinoamericanas vai se conformando cadeias de regimes de poder, diferenciados mas profundamente conectados com as disputas geopolíticas, os Estados da região e os processos de acumulação do capital a escala global. Convém examinar as tendências que configuram, desde cima, um marco de excepcionalidade e militarização de todos os âmbitos da vida; e desde baixo, uma cooptação do antagonismo, especialmente de suas facetas autoritário-delinquenciais.
Gerindo o caos desde cima: regimes de exceção e militarização da vida
Os tempos por vir na América Latina parecem apontar a tempos conflitivos, de revoltas e intensas disputas territoriais pelos recursos. Os Estados latino-americanos não só vaõ se adaptando às dinâmicas de crise econômica global através da crescente execução de reformas e ajustes macroeconômicos (desde a Reforma Energética no México até as Zonas Econômicas Especiais na Venezuela), senão também se vêm compelidos a desenvolver ou ampliar formas de cooperação com a lógica de guerra global imperante.
Neste marco, e com olhar na administração e gestão dos cenários de crise e caos sistêmico, se desenha uma crescente política de militarização de todos os âmbitos da vida e a expansão de estados de exceção diferenciados. Situações ou contextos de contingência vinculados à uma “ameaça excepcional”, vão sendo canalizados através destes mecanismos de controle, seja por crise econômica (como o Estado de Exceção e Emergência Econômica decretado à nível nacional na Venezuela desde maio de 2016, para combater a “guerra econômica” e outros fatores [9]); luta contra o terrorismo e o narcotráfico (como o declarado pelo governo peruano em setembro de 2016, em três distritos de Huancavelica, Ayacucho e Cuzco [10]); fenômenos naturais (como a explosão do vulcão Cotopaxi em agosto de 2015, que implicou uma declaração de estado de exceção à nível nacional e mobilização de todas as forças armadas no Equador [11]); grandes eventos (como o estado de exceção declarado pelo governo brasileiro para os Jogos Olímpicos de agosto de 2016 [12]); e evidentemente revoltas populares e manifestações sociais de diversos tipos.
Mas é fundamental destacar que o desenvolvimento deste processo não se dá só por decretos; a promulgação de leis antiterroristas e o endurecimento dos códigos penais; o estabelecimento de novas bases militares estadunidenses na região (especialmente no Peru, Paraguai e Colômbia); a modernização das forças militares, policiais e de inteligência; ou inclusive a busca de consolidação do Conselho de Defesa Sul-americano da UNASUR; senão de como todos os aspectos e âmbitos da vida social vão sendo atravessados progressivamente pela lógica militar/policial de controle, sítio, vigilância e repressão. De como o sistema de direitos e garantias sociais vai ficando cada vez mais suspenso para que se vá impondo um regime político de excepcionalidade permanente, que permite às forças de segurança oficial tomar o controle dos recursos, instituições e territórios “vulneráveis” pela “ameaça extraordinária”.
Tudo isso vai se configurando independentemente de se a aliança geopolítica dos diferentes Estados latinoamericanos é com os Estados Unidos, com China ou com outros atores nacionais e corporativos.
No entanto, como já sinalizamos, estes processos evoluem de maneiras diferenciadas nos países e territórios latino-americanos, ao tempo que não se trata necessariamente de regimes rolo compressor ou de formas totalitária homogeneizantes, senão que respondem a estratégias variáveis, flexíveis e regionalizadas.
Por um lado, deve-se tomar em conta as estruturas políticas domésticas, a significação geopolítica de cada país e regiões, a importância de seus recursos e a intensidade das resistências populares frente os diversos processos de intervenção do capital, para compreender como se atribuem e se recorrem às diferentes modalidade e intensidade de operação sobre os territórios e população.
No México, a “Guerra contra o Narcotráfico” (2006+) e a Lei de Segurança Nacional (2011) geram um marco de brutal excepcionalidade permanente e generalizada, com numerosas similitudes à região centro-americana, em especial em El Salvador, Guatemala e Honduras.
Na América do Sul, Colômbia destaca como regime constituído em boa medida pela excepcionalidade e por ser uma área geopolítica de pivô (ou charneira), sendo que o cenário pós-conflito não supõe necessariamente que se interrompa o processo de militarização imperante (com processos atuais de intensa repressão social e desaparição de ativistas) e o crescimento da assistência militar por parte dos EUA [13].
Por sua vez, nos países de governos progressistas latino-americanos se produziu intensas disputas sociopolíticas atravessadas por atores rivais nacionais e internacionais, o qual incrementa os níveis de conflitividade geral, e portanto, os processos de militarização e cenários de excepcionalidade, sendo Venezuela o caso onde isto se desenvolve com mais intensidade.
A Amazônia aparece como uma zona chave na evolução destes processos de conflito. Do mesmo modo, destacam-se formas de militarização urbana (ex. Caso brasileiro) e as complexas dinâmicas fronteiriças em toda a região (ex. A Tríplice Fronteira ou a fronteira Colombo-venezuelana).
Por último, ainda que países como Chile, Uruguai ou Costa Rica não apareçam como grandes áreas estratégicas, de risco ou de insubordinação, podem aparecer processos deste tipo em menor escala ou setorizados, como ocorre com a crescente militarização e conflito na araucania chilena.
Finalmente, é essencial insistir que o custo político, econômico e social, e as enormes dificuldades que acarretam a execução e manutenção de um regime total de excepcionalidade permanente a escala nacional, coloca a pertinência para o status quo do impulso de políticas setorizadas e de contingência.
O fim do ciclo não tem que ser pensando única e necessariamente como um tsunami arrasador. Uma restauração conservadora na América Latina ou uma radicalização da acumulação por despossessão parece ir montando-se progressivamente, mediante políticas que, ainda que possam chegar a ser violentas e de ampliaçãodo descaso social, se configuram de maneiras seletivas e diferenciadas.
Mais além destes dispositivos exibidos desde cima, é necessário também examinar como estes também podem expandir-se a partir das próprias tramas da vida social, analisar como vão se configurando desde baixo.
Gerir o caos desde baixo: autoritarismos delinquenciais e o tecido social como campo de batalha.
A pesar da progressiva configuração de todos estes dispositivos de controle, os marcos da legalidade e dos aparatos e instituições formais estão sendo cada vez mais transbordados pelas dinâmicas sociais, culturais, metabólicas e territoriais que se desenvolvem nas entranhas da região, e que descrevemos anteriormente.
O crescimento de redes de narcotráfico, de amplas molduras de economias informais e comércio de contrabando, muitos deles de caráter transfronteiriço, e a acelerada expansão da mineração ilegal, principalmente na região amazônica, estão constituídos por grupos sociopolíticos que conseguem exercer cada vez mais poder sobre os territórios, configurar economias locais com cada vez maior afinco popular, gerar crescentes danos ambientais e impactar significativamente sobre os tecidos sociais e os processos de produção cultural e de subjetividade.
O controle territorial dos cartéis mexicanos em várias regiões do país; o avanço político das “maras” na América Central (recordemos a greve de transporte convocada por Mara Salvatrucha e Barrio 18 em El Salvador, em julho de 2015 [14]), as estruturas de poder de grupos armados irregulares e gangues criminosas urbanas e rurais na Colômbia, e a forma acelerada como cresceram as mesmas na Venezuela; a expansão do tráfico de commodities na Amazônia e outras zonas do subcontinente (especialmente nas novas fronteiras de extração); são expressão de como estes grupos podem inclusive criar seus próprios regimes políticos, suas próprias formas de excepcionalidade, os quais podemos entender como autoritarismos delinquenciais regionalizados.
Nestes circuitos e territorializações, não há área protegida, zonas de reserva, direitos humanos, regulações econômicas e jurídicas que o valha, não só porque não se impõe uma institucionalidade formal que os faça respeitar, senão porque ao mesmo tempo vão se institucionalizando desde baixo estes outros formatos do “paralelo” – ilegal-informal.
É comum impingir a ocorrência destes fenômenos a uma “ausência de Estado”, e ainda que de fato isto possa revelar um abandono ou deslocamento da institucionalidade estatal, convém também analisar processos de cooperação e articulação que estão se produzindo entre os âmbitos do formal/legal e o informal/ilegal.
O capital e o Estado podem configurar uma poderosa biopolítica que opera em um duplo âmbito de ação: não somente na militarização da vida e sua lógica de controle de amplo espectro, impulsionada desde cima, senão também buscando cooptar as pulsões contra-hegemônicas, desde baixo. Isto basicamente implica tentar canalizar o mal-estar popular, o transbordamento social, as pulsões de sublevação e de poder, pondo especial atenção nas poderosas estruturas delinquenciais, para favorecer formas de controle territorial e apropriação local do trabalho, os recursos, os corpos e o território, ao mesmo tempo que se possa dividir, fragmentar e vulnerabilizar ainda mais o tecido social que poderia conformar a alternativa contra-hegemônica. Dessa forma, o tecido social se converte em campo de batalha.
O lema mexicano em torno da tragédia de Ayotzinapa (2014) de”No fué el narco, fué el Estado”, que expressa um regime de co-governança e entrecruzamento de aparatos repressivos formais e grupos delinquenciais; as variadas expressões cooperativas entre setores militares e os grupos que impulsionam a expansão da mineração ilegal na região amazônica; ou bem o importante rol que vão adquirindo as instituições policiais no próprio auge da delinquência urbana; por mencionar alguns exemplos, revelam um padrão de poder que tem um caráter multiescalar, corporativo e reticular , no qual as fronteiras entre o formal/legal e o informal/ilegal vão se fazendo cada vez mais apagadas. Isto nos traz de novo à recorrente pergunta sobre o que é o Estado, pensando-o agora a partir da América Latina no século XXI.
Tomando em conta o auge dos poderes territoriais delinquenciais e as ramificações e transbordamentos dos Estados mais além das margens do formal/legal, nos perguntamos também se trata-se somente de uma tendência conjuntural ou se estamos frente à configuração histórica de novas formas de estatalidade na região. No marco da geopolítica latino-americana, estamos frente uma tendência regional estruturada e determinada pelas intensas disputas intercapitalista mundiais? São exemplos africanos e asiáticos (como o Boko Haram ou o ISIS), referentes a um padrão de apropriação radical nos territórios do Sul Global?
Na biopolítica da disputa mundial, a batalha transcendental está se produzindo sobre os tecidos sociais e os territórios/ecossistemas. É fundamental levar em conta estas tendências nas análises dos tempos por vir para a região. Se trata de uma questão vital.
O comum no caos: pensar-nos desde o conflito, disputar o antagonismo, tecer comunidade
O caos sistêmico é também a revelação de um sistema extraordinariamente rachado, por onde sempre poderão colar-se às pulsões das revoltas e a transformação para a emancipação. O esgotamento do “ciclo progressista” muito provavelmente vai supor a abertura de novos ciclos de lutas populares na América Latina, as quais por sua vez poderiam promover o surgimento e expansão de novas modalidades, narrativas e formatos de operação nas mesmas. Mas um desenlace da atual encruzilhada regional, o mais favorável possível para um projeto popular-ecológico-emancipatório, passa por reconhecer os códigos de operação destes agressivos regimes de poder multi-escalares. Dizer que os próprios tecidos socioterritoriais são um campo de intensa batalha, como nunca antes na história do capitalismo, supõe reconhecer que a força destrutiva do capital penetra nas redes da vida – sua força ecocida – e na própria constituição do popular-comunitário. Como se desenvolve e se desenvolverá o antagonismo do popular, o antagonismo dos pobres e excluídos em tempos de caos sistêmico? Que formas toma ou pode tomar?
Intervir violentamente na própria produção constitutiva do popular-comunitário busca transformar sua potência em máquinas fragmentadas de guerra, em campo fértil para a distopia; canalizar o descontentamento social frente formas orgânicas de fascismo; formatar a comunidade para o combate ao que está fora dela – as maras centro-americanas podem ser interpretadas como comunidades/máquinas de guerra -; e assim voltar inviável a massividade de uma revolta emancipatória.
Não basta pois, somente promover o antagonismo contra-hegemônico, senão inclusive disputar para tentar canalizá-lo a um projeto coletivo e emancipatório do comum-diverso-ecológico, onde o humano se funde com a realidade material de sua geografia imediata, de seu ecossistema, e da reprodução e afirmação da vida.
Isto implica privilegiar uma política a partir dos territórios e portanto, alcançar uma meta que até agora não se conseguiu no grosso dos projetos e narrativas da esquerda: descentrar o rol do Estado nas transformações sociais. Não se trata de ignorar sua presença, operação e poder, nem tampouco, como insistiram alguns autores, reivindicar um “horizonte localista”, senão impulsionar uma estratégia multi-escalar na qual a luta territorial e a reprodução material da vida são centrais e ponto de partida de toda a luta emancipatória.
Quando pensamos nas estratégias e narrativas na escala global, a regional e inclusive a nacional, o que nos resta por reivindicar em quanto as grandes narrativas políticas, essas que podem unir numerosas subjetividades e agrupações em torno de um projeto comum? O socialismo? O desenvolvimento? A democracia?
Frente o transbordamento dos contratos sociais e a configuração da guerra como fator de organização por excelência, devemos defender ao máximo os princípios e marcos mínimos dos estados de direito, de garantias mínimas sociais, os pilares do ideal da democracia? O que resta como projeto para a convergência de lutas, mais além do parapeito das estruturas institucionais da modernidade? É possível ressignificar os pilares fundamentais da chamada democracia? Uma democracia radical e ecológica poderia e deveria ser um eixo narrativo e programático que articule diversas iniciativas populares de luta? Podemos avançar juntos sem um grande projeto mobilizador?
Talvez um dos paradoxos dos tempos que vivemos reside na forçosa combinação de uma esperança a qual não podemos renunciar, com a franqueza e valentia de reconhecer que o transbordamento do conflito, sua massividade, sua multiplicidade, nos habita cada vez mais. Seria o estouro social do Caracazo em 1989 na Venezuela somente um acontecimento histórico ou a expressão da configuração de um novo cenário político urbano, da inviabilidade das cidades latino-americanas, da latência de seu transbordamento?
As intensas lutas de resistência indígenas e camponesas no Peru; as fogueiras e as guardas comunitárias em Cherán, México; as retenções de militares por parte de povos indígenas na Colômbia e Venezuela; os bloqueios nas estradas e assembléias populares em comunidades como Famatina, Argentina; os bloqueios a escavadoras e múltiplos métodos de ação direta para a resistência, realizados em numerosas localidades latino-americanas; são conflitos convencionais ou a resposta frente um radical avanço belicista a respeito das novas fronteiras de commodities? Acreditamos que pensar as alternativas passa também necessariamente por pensar-nos a partir do conflito.
Talvez convenha reivindicar o “princípio de esperança” não unicamente ancorado em um horizonte ideal por conseguir, senão também orientado a uma disposição que rodeia e fica contida no fazer, no devir, seja quando as águas estão calmas, seja quando haja avisos de tempestade. Entretanto, tecer e tecer comunidade, em cada âmbito e escala de luta, parece um objetivo vital nestes tempos. E não esquecer que o jogo segue aberto.
Caracas, dezembro de 2016.
Fontes consultadas
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[1] Sobre esta discussão, ver por exemplo: Krieg, Andreas. Externalizing the burden of war: the Obama Doctrine and US foreign policy in the Middle East.
[2] Ver: United Nations. World Urbanization Prospects 2014; y CEPAL. Ciudades sostenibles con igualdad en América Latina y el Caribe.
[3] Roa Avendaño, Tatiana. Scandizzo, Hernán. Qué entendemos por energía extrema.
[4] UNEP. Recent Trends in Material Flows and Resources Productivity in Latin America.
[5] United Nations. América Latina debe impulsar un modelo de crecimiento urbano que genere riqueza, sugiere el PNUD.
[6] Justo, Marcelo. ¿Cómo terminar con el trabajo informal en América Latina? AFP. OIT: empleo informal en América Latina alcanza el 50%.
[7] Teran Mantovani, Emiliano. La crisis del capitalismo rentístico y el neoliberalismo mutante (1983-2013).
[8] Teran Mantovani, Emiliano. Los rasgos del “Efecto China” y sus vínculos con el extractivismo en América Latina.
[9] Alba Ciudad. Conozca el Decreto de Estado de Excepción y Emergencia Económica firmado por el Presidente Maduro este 13 de mayo.
[10] EFE. Gobierno peruano declara estado de excepción en tres distritos por terrorismo.
[11] Constante, Soraya. Correa declara el estado de excepción por la erupción de un volcán
[12] Telesur. Brasil declara estado de excepción para Olímpicos Río 2016.
[13] The White House. FACT SHEET: Peace Colombia — A New Era of Partnership between the United States and Colombia.
[14] BBC Mundo. El paro que demuestra el poder de las maras en El Salvador.