texto por Edson Teles
foto: Centro de Mídia Independente: https://midiaindependente.org/?q=node/298
A securitização das práticas sociais tem sido recorrente nos vários modos de governo da vida. Se nas principais potências militares do planeta isto se dê sob a alegação de guerra ao terrorismo, aqui no Brasil a justificativa é o combate à criminalidade e à violência urbana.
Em São Paulo, neste mês de maio, tentaram legitimar uma ainda maior militarização da cidade. Foi a operação visando acabar com a “anormalidade” dos usuários de drogas na Cracolândia. Mais conhecido como “política higienista”, o “Projeto Redenção” da Prefeitura de São Paulo, cuja parte de suas reuniões, não sem propósito, ocorreram na Secretaria de Segurança Pública, visa “erradicar” – arrancar pela raiz, eliminar, extirpar – o tráfico de drogas e “revitalizar” a distribuição da posse imobiliária da região.
As cenas que se seguiram à determinação do prefeito, juntamente com o governador e por meio de suas forças policiais, foram de violência indiscriminada. Bombas, tiros, ameaças, destruição de imóveis provocando o “fluxo” desesperado de centenas de paulistanos, abandonados pelas instituições que deveriam lhes garantir direitos. É como se fosse necessário, para este modo fascista de governo, transformar seres humanos em bando, os excluindo do acesso à lei, para acionar os mecanismos inscritos na mesma lei e que visam lidar com possíveis situações emergenciais. O bando é a própria condição da efetividade de um poder autoritário e discricionário, cujos instrumentos devem ser os equipamentos do Estado.
Os fluxos resultantes da repressão policial produziram outras cracolândias pelo Centro de São Paulo. São cenas conhecidas do paulistano. Em janeiro de 2012, Prefeitura e Estado haviam “deflagrado” a “Operação Dor e Sofrimento”, cuja síntese funcional era inflingir dor e sofrimento aos usuários, mediante a falta da droga e a dificuldade de fixação, obrigando-os a solicitarem ou aceitarem ajuda (leia-se: “internação”). Agora, em 2017, a agressão do Estado foi mais longe e pretende, com autorização judicial, abordar, deter e internar compulsoriamente os indivíduos considerados perigosos para a “ordem pública” na região.
Mas de qual “ordem pública” se está falando? Por que a garantia da lei e da ordem exige zonas de indistinção entre o lícito e o ilícito, o democrático e o fascista? A que visa a política de produção dos “bandos”?
Sem dúvida que no caso da Cracolândia um dos principais objetivos específicos da ação criminosa das instituições do Estado é a tentativa de erigir a “Nova Luz”, projeto de especulação imobiliária para a construção de torres de apartamentos e de centros comerciais sob a direção das já excessivamente delatadas construtoras. A alegação de lugar degradado não se deve à presença de usuários de drogas, mas à negligência do poder público em cumprir funções e serviços básicos como coleta de lixo, manutenção dos espaços comuns, cuidado com os bens históricos e culturais do bairro. Soma-se ainda o fechamento de um grande centro comercial, em 2007, e a demolição deste e de outros imóveis nos anos seguintes, espaço para onde se deslocaram com mais intensidade os abandonados e esquecidos.
Contudo, há nestas ações a articulação de uma militarização da vida urbana, ou ainda, da política. Atos de governo para a manutenção da ordem – higienistas, como na Cracolândia, ou repressivas, como na violência contra as manifestações do “Ocupa Brasília” – não objetivam somente os “criminosos”, “traficantes” e “vândalos”. Estariam na mira das forças da ordem todos os que podem ser de alguma forma perturbadores da normalidade hegemônica submetida a poderes econômicos, oligárquicos e políticos.
Quando em 2007 o então ministro da Defesa Nelson Jobim anunciou que a presença das tropas brasileiras em solo haitiano seria um bom treino para a garantia da lei e da ordem no Brasil, já se visava agredir com esta força militar os atos de protesto e movimentos de resistência, desde os mais críticos às políticas neoliberais até os coletivos de luta contra a gentrificação e em defesa de direitos humanos. No manual do ministério da Defesa, de execução da “Garantia da Lei e da Ordem”, de 2013, pode-se ler que seu uso se destina, como uma de suas principais funções, ao emprego das Forças Armadas quando houver o “esgotamento” dos órgãos de segurança pública para conter os “movimentos contestatórios”. No cenário do treino descrito no “Manual” se descreve como “forças oponentes” os “elementos integrantes de movimentos sociais reivindicatórios, de oposição ou protesto, comprometendo a ordem pública”.
No movimento “Ocupa Brasília” se tentou, novamente como em outros momentos de produção de farsas da lógica da governabilidade, alegar a violência de alguns, os “vândalos” infiltrados nos movimentos sociais, para reprimir indiscriminadamente e em proporções obviamente desiguais e absurdas corpos em resistência. Esse parece ser o alvo: os corpos em luta, em especial os dos negros, dos pobres e das mulheres.
Frequentemente, lanço meu próprio corpo às ruas em dias de manifestações. Desde 2013 não vou a elas sem um lenço para tapar o meu rosto. Eu sei que se for uma manifestação que apresente qualquer risco à “ordem”, as bombas e tiros virão. A “máscara” é o mínimo de proteção. E lá, no calor da correria, quando a polícia começa a agredir indiscriminadamente para intimidar o protesto, facilmente entendo e me solidarizo com os que têm a desproporcional coragem (em relação à força policial) para enfrentar as agressões. Não dá mais para apelar à lógica conciliatória diante do governo da vida descartável e matável. É claro que não se deve lançar-se contra o que irá nos ferir profundamente, é importante se preservar. Mas compreendo a revolta (e isso é também política, concorde-se ou não com o método) produtora dos ataques aos símbolos do capitalismo ou da burocracia e das instituições do Estado.
Dor, sofrimento, redenção. Redenção, dor, sofrimento, repressão. Não, a redenção não aconteceu. Ninguém foi liberto, salvo ou reabilitado. Tal como no “Projeto Redenção” em São Paulo, a violência do Estado se repetiu, sob moldes parecidos, nas proximidades do município de Redenção, no interior do Pará. Dez pessoas foram executadas pela Polícia Militar, segundo os relatos dos sobreviventes colhidos pelo Ministério Público Federal. O que mais se pode ler nestes depoimentos transcritos é: “a polícia chegou atirando”, de modo semelhante a Cracolândia ou a Brasília, mas com munição letal. Redenção é uma localização próxima ao massacre de Eldorado dos Carajás, que completa 21 anos com profundos rastros de impunidade. É também a região onde, entre 1972 e 1974, cerca de 100 guerrilheiros de resistência à ditadura foram assassinados e, em sua maioria, continuam com os corpos desaparecidos até hoje.
Brasília, Cracolândia e Redenção não são fatos isolados. Também não começaram a ser praticados ontem. São modelos de laboratório para a modulação de uma sociedade de controle. A sinergia entre estas operações de higienização, repressão a manifestações e eliminação de corpos em resistência é a característica e confirmação maior da militarização da vida, das subjetividades e da política. Essa nova política militar já vem sendo testada nos conflitos de terra, nas periferias das grandes cidades, nos entornos de campos de futebol, nos megaeventos esportivos por vários anos e, nestes dias, a vimos em plena potência. Esses modelos de “pacificação” e controle via a militarização vêm acompanhados de discursos de conciliação, consenso e manutenção da ordem. Trata-se de um tipo de biopolítica, praticada desde sempre, é verdade, mas que sofreu uma intensificação na última década (é só conferir relatórios de ONGs de direitos humanos) e sob os olhares atônitos ou de cumplicidade das instituições do Estado de Direito.
São operações – termo apropriado ao discurso da guerra mobilizado (vocabulário utilizado também contra a violência urbana, o ataque à propriedade, os “vândalos”, mas que se soma à guerra contra o tráfico, alimentar, da saúde pública) – que desfazem as separações jurídicas e éticas entre o lícito e o ilícito, o legítimo e o ilegítimo. São cada vez mais localizadas, para não se tornarem alvo de denúncias do modelo bélico e ainda servirem como teste; e, permanentes, normalizando o que surge perante a opinião pública como exceção. Em vez dessa militarização da política se fundamentar nos direitos humanos, nas leis e na cidadania, tais formas de controle social emergem com base na construção dos perfis de indivíduos e de comportamentos, de territórios e coletivos, aos quais são atribuídos qualificações e graus de risco à ordem, bem como potências de resistência.
A vigilância da vida (tanto as de resistência quanto as corriqueiras) tem como paradigma o controle dos espaços, comuns e privados, das estruturas e práticas sociais e da circulação dos corpos a partir da produção da ideia da guerra e da insegurança. Isso serve à militarização de discussões sobre a menoridade, o transporte, as paisagens e os espaços urbanos, mas também de questões amplas como a cultura popular. Os argumentos da guerra e da militarização se dirigem inclusive aos processos de produção de subjetividades. São nesses processos que se encontra a vida política mais profunda. E, também, são nessas ranhuras e porosidades do cotidiano que se criam as mais eficazes estratégias de resistência.