História em pedaços – Brasília, 24 de maio

Publicamos aqui um relato de Gavin Adams sobre os acontecimentos do dia 24 de maio de 2017 em Brasília. Gavin tem realizado um rigoroso trabalho de observação, registro, coleta e interpretação de diversas manifestações de rua que vem ocorrendo desde o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Seus relatos são documentos preciosos sobre o atual momento histórico; uma observação fina no nível da rua, olhar de formiga construindo análises a partir de fragmentos. Na melhor tradição etnográfica ativista e num esforço benjaminiano, Gavin vai recolhendo tudo, como que tentando antecipar o pior porvir, deixando assim um rastro para o aprendizado de futuros intérpretes sobre nossa catástrofe.

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24 de maio

Cheguei no cruzamento central da cidade de Brasília a pé às 13:15h. O Shopping Conjunto Nacional estava à minha esquerda quando entrei e percorri o viaduto sobre o Eixo Monumental. Fui surpreendido pela multidão que já escoava pela avenida embaixo de mim. Esperava alcançar o Estádio Mané Garrincha para a concentração, mas a torrente era tal que fiquei para olhar. Tinha tanta gente que não deve ter cabido no estacionamento e acabou espirrando pela avenida, iniciando a passeata antes do horário previsto de início, que era 14h.

Era muito bonito de ver e centenas de grupos, centrais e sindicatos caminhavam sob o forte sol, dos dois lados do viaduto. Muita bandeira, faixa e cartaz. Era uma verdadeira salada de frutas composta de inúmeros sindicatos e centrais. Tinha vários carros de som, e nesse segmento em particular predominavam os aventais amarelos da NCST. Muitos manifestantes sindicalistas estavam lá em cima do viaduto olhando a multidão também. Desci para a avenida e decidi caminhar um pouco em sentido contrário, na direção do estádio, para checar a passeata.

Logo vi os Policiais Penitenciários, acho que carcereiros, de preto, talvez uns 300. São da Força Sindical. Vi a faixa “A reforma da Previdência é o fim da aposentadoria dos policiais”. Notei alguns dos numerosos balões da manifestação: CUT, CTB e CNTI. As centrais tinham trazido muita gente que vestia seus aventais e tremulava suas bandeiras. Eram muitos corpos em movimento.

Tentei anotar os nomes dos sindicatos cujas faixas, camisetas ou bandeiras eu encontrava, mas eram tantos que apenas capturei algumas siglas. Alguns tinham nomes bem curiosos, e na hora achei que poderiam compor uma prateleira de remédios de uma farmacopéia laborista: APRASC, STICMA, ENESSO, FASUBRA, SINTRATECOB.

Outras associações presentes ali naquele trecho: SINTHOTESB, SINDIRETA – DF, CSPB, CONTRATUTH, SINDUS, INTERSINDICAL, UGT, CTB, CONTAC, FORÇA SINDICAL, CGTB, MST, CSP-CONLUTAS, FSCM. Vi um grupo de uns 15 jovens negros com uma bandeira Quilombo. Bandeiras do Povo Sem Medo, das Brigadas Populares. Vi bandeiras do Brasil (umas seis), da Juventude do PT, do Pernambuco e Paraíba. Um moço vestia a camiseta com o rosto de Lula: “O cara está voltando!”.

Ao caminhar vi os vários carros de som. Alguns tinham nomes como “Chumbo Grosso” e “Trio Laser”. Quando tem muita gente, o carro de som fica menos agressivo, e é possível buscar espaços mais vazios de som. O rumor geral das vozes era um oceano vivo. Mas os oradores estavam no modo sindical clássico. Apesar disso, o clima geral era de festa e carnaval. Um dos carros, inclusive, de Minas, trazia uns meninos que faziam um funk vocal, com beatbox e tudo. Naturalmente, muito Fora Temer e Diretas Já!. Uma outra palavra de ordem dizia “ô deputado, presta atenção, se você vota sim, a gente vota não!”. Um senhor de pé, parado na calçada, tinha um cartaz: “Precisa-se de presidente, governador e deputado para trabalhar na saúde, educação, segurança. Povo paga bem! Sem corruptos”. Um cartaz trazia “Liberte Rafael Braga”.

Decidi voltar e caminhar na direção do fluxo. Passamos ao lado da Rodoviária e um orador anunciou 100 mil manifestantes. Outro mais adiante afirmou que a Globo tinha contado 25 mil (a PM deu 35 ao fim do dia). A contagem final na imprensa de esquerda deu um teto de 150 mil. Foi chamada de “a maior marcha da história” da esquerda em Brasília. Muita gente buscava refúgio debaixo da sombra das poucas árvores ao longo da avenida. Um orador em um carro de som rogou aos “companheiros de amarelo sentados na sombra, venham para a luta companheiros!”. Vi enfermeiras, aeroportuários, e depois os estivadores do Rio com suas camisetas “113 anos de luta e resistência”. Ao lado deles, os “Arrumadores de Itajaí”, com bandeira. Vi uma bandeira com o rosto do Che e “Juntos na Luta”, uma do PCdoB, da FENTECT, da FETRHOTEL, do CONEN, e outra do SINTUFF. Uma camiseta do Levante Popular da Juventude.

Tinha muitos balões na passeata, contei mais de 100. Vi uma faixa “Volta Dilma – Anula o golpe”. Vi uma camiseta “Sou mais favela”, uma outra “Greve de 2006 – eu participei”, e uma bandeira do Rio Grande do Sul. Vi uma moça indígena de cocar.

As palavras de ordem eram as clássicas e esperadas FT! E DJ!, além de “Golpistas, fascista, não passarão”. Teve muita chamada para a Greve Geral, que desta vez quer ser de 48 horas. O nome de Lula não foi chamado até onde ouvi. Fiquei de olho nas bandeiras do Brasil que eu via. Acho que até então umas 12, quase sempre aos ombros. Parei de contar aos 50.

Entramos na Esplanada. Seguindo pela avenida, pela via da esquerda, notei um dragão inflável que estava sendo enchido. Ele tinha uns 10 metros e possuía três cabeças. Pude ver apenas duas palavras que nomeava cada uma delas: “juros” e “desemprego”. Mais adiante, uma pipa gigante, ainda no chão, com as cores LGBT e uma cauda que trazia um Fora Temer. Vi o Sindicato de Padeiros de São Paulo, uma bandeira do SINDUTE, do PSTU. Um ambulante vendia adesivos de unha no asfalto, muito buscado por manifestantes. Vi o Ivan Valente do PSOL e finalmente alcancei os policiais penitenciários que vira do viaduto.

Ia chegando mais perto do fim da Esplanada, onde acabam os ministérios, tendo passado vários carros de som. Deu para ver gente voltando, e dava para sentir alguma atividade lá na frente e sentir um cheiro de gás lacrimogênio. Um helicóptero da PM sobrevoava o local. A partir daqui, coletei uma infinidade de pequenos eventos que só mais tarde compilei em um retrato narrativo mais coerente. Do nível do chão, era difícil ter uma visão mais geral. Nas muitas reportagens que vi depois, era muito fácil colar os fragmentos de maneira maliciosa.

Vi três carros de som, que eram os que estava mais perto da barreira policial. Dois deles vinham perpendiculares à barreira policial, que bloqueava o acesso ao Congresso. Eles acompanhavam a multidão que vinha pela via da esquerda na Esplanada. Estavam parados a uns 500 metros da PM. O outro carro tinha chegado antes, creio, e estava transversal barreira policial, mais do lado da via da direita da avenida. Era o carro de som da Pública. Os carros mais próximos eram um do PSTU CONLUTAS e o outro da CUT/UGT/CTB/CSB. Um outro da Força ficou lá trás.

Pareceu de começo que o PSTU estava chamando o povo para o confronto, e que a CUT pelegava. Mas depois percebi que o pau já estava comendo e os três carros no final estavam pedindo e participando da defesa à agressão policial. No geral estes três carros participaram da resistência e buscaram sensibilizar a PM, dizendo “voltem suas bombas para trás, contra Temer e o Congresso”. Além disso, faziam as chamadas de concentração e encorajavam a formação defensiva e de confronto.

É importante aqui sublinhar que a ação repressiva policial NÃO FOI RESPOSTA A VANDALISMO. Nenhum prédio tinha sido tocado quando as bombas e balas começaram a chover. A ação foi claramente de dispersão e não de contenção de indivíduos violentos. Pelo menos um manifestante foi baleado com munição viva, de arma de fogo. Vi depois na televisão que havia uma fileira de PMs no começo da Esplanda que pretendia revistar uma a uma 150 mil pessoas. O povo avançou e furou a coluna. A PM reagiu então e depois. Não se tratou de vandalismo.

Assim, cheguei ao fim da Esplanada em plena conflagração. Eram umas 14:15h talvez. Escorri pela direita, em direção à linha de frente. Colei atrás dos policiais penitenciários, que claramente estavam prontos para a briga, atraídos pelo confronto. Mas um megafone avisou-lhes que obedecessem à liderança e não brigassem. Segui então uma bandeira do MAIS que ia à linha de frente.

Vi melhor a linha de confronto. Um gradil separava os muitos PMs. Contei ali, à vista, uns 500. Mas depois na TV vi mais de 500 à espera atrás de um edifício. Tinha cavalaria, uma dúzia deles. Uns 200 soldados de escudo, capacete e cassetete, com atiradores. Estes estavam bloqueando a via asfaltada, portanto à minha esquerda era o foco do embate. O gramado for reservado para a manifestação, e o espaço atrás das grades, guardado pela PM, nos era proibido. Os primeiros 100 metros de gramado em frente a grade era área de risco e de contato com projéteis.

O dia todo pode ser resumido como um vai e vem do povo contra a barreira, seguida depois de uma lenta varredura pela PM do espaço da esplanada em direção ao estádio, de onde viéramos. Ao lado disso, a certa altura, uma meninada foi progressivamente atacando os ministérios, protegendo-se com barricadas para ir segurando a PM enquanto trabalhavam todos os edifícios até o fim da Esplanada.

Então o povo ia chegando e enchendo o espaço. Quando juntava massa crítica, estourava uma onda que ia encarar os policiais. Acabavam por recuar, depois de mais ou menos resistência. Então tinha várias zonas dentro da manifestação sob ataque. O fogo do confronto na frente, uma linha intermediária e uma zona de retaguarda, onde as pessoas sentavam-se sobre a relva ou conversavam em grupos. As zonas se expandiram e contraíram ao sabor do embate. Mas a ação da PM não fazia muita distinção e frequentemente atacava todas as zonas, redesenhando subitamente o mapa da refrega.

Andei um pouco pela zona intermediária e vi uma bandeira trazia “UERJ em luta”. Uma meninada do JUNTOS vieram de amarelo e de escudos feitos de câmara de pneu de caminhão e foram para a linha de frente. Vi uma leva de pessoas com bandeiras do PCB e da Unidade Classista. Muitos autonomistas presentes, inclusive Black Blocks que tiveram destaque depois. Um palhaço de nariz vermelho. Trazia um cartaz onde se lia “Não sou palhaço, não bati panela”. Um homem se fantasiara de vampiro grisalho e vestia uma faixa presidencial. Ele sorriu para mim.

Achei a coisa toda meio surreal, uma mistura de “fog of war” com carnaval veneziano sob o gás lacrimogênio. Os três carros de som irradiando vozes iradas que descascavam a ação da polícia, chamando a insurreição. As nuvens de gás varrendo a multidão. Gente em modo combate, outras relaxadas conversando, outras cuspindo e vomitando com o lacrimogênio e pimenta, de joelhos na grama. Acabei por lembrar de filmes como Kagemusha e outros filmes de guerra. Aqui do chão dava para ver grupos de bandeiras percorrendo o campo aberto por cima da cabeça das pessoas, indicando concentrações e dispersões de corpos. Tem algo de medieval nos embates de rua. Aqui, no espraiamento da Esplanada, era quase um xadrez.

E, bem nessa hora, uma banda, no carro da Pública perto de onde eu estava, começou a tocar “Será?” do Legião Urbana. “Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?”. Não posso dizer que sou fã do Legião, mas esta canção, no meio das bombas e gritos, bandeiras e palavras de ordem, no meio do Planalto Central do Brasil, comoveu. Que vida louca, eu com 50 anos e cabelos grisalhos ouvindo uma canção da adolescência perdida aqui nos campos da luta política atual. Nessa hora eu ainda era o jovem tímido esperando a vez de um futuro melhor, hoje cercado de meninas e meninos que iam confrontar a polícia e seus projéteis. A distância entre o país dos anos 1980 e esse Brasil do quase AI-5 colapsando em um motim sindical em frente ao Congresso Nacional.

Eram 14:30h quando a cavalaria atacou. Eram uns 15 enormes cavalos cavalgando pelo gramado. Nessa hora tive medo. Uma coluna de soldados paramentados pode ser vencida na corrida. Mas a velocidade e inércia geradas por um grupo de cavaleiros é muito potente. Lembro-me dos motins contra o imposto individual na Inglaterra, o chamado poll-tax. Uma manifestação grande foi reprimida pela polícia, incluindo uma carga de cavalaria e seus longos bastões. Uma moça foi atropelada pela tropa montada e se machucou muito.

Então eu corri. O orador no carro de som ficou revoltado e gritou muito contra a cavalaria. Só que aí a carga de cavalos hesitou e parou. O povo então se voltou contra os cavalos! Vi umas 2 mil pessoas correndo na direção da cavalaria gritando “pega eles! Fascistas!”. De onde eu estava vi também várias bandeiras tremulando nervosas voando em direção ao foco. A cavalaria recuou e se recolheu. Exultamos todos. Foi lindo.

Nessa exata hora encontrei G do Arrua, o único conhecido que vi hoje. Conversamos um pouco. As bombas e balas de borracha continuavam a voar em nossa direção. Alguns atiravam pedras contra a polícia, às vezes algum rojão, mas a palavra “confronto” não é exata. Trata-se de tiro ao alvo, de agressão e repressão violenta. Não pude deixa de lembrar dos atos do MPL em São Paulo. A operação policial era idêntica: repressão ao direito de manifestação, provocação, perseguição pós-ato e atos ilegais como uso de arma de fogo, acompanhados de cobertura maliciosa da imprensa que fazia petistas… apoiar a ação policial! Lembro-me que ouvia então dos autonomistas “quando a PM bater em vocês amanhã nós também vamos ficar de lado olhando”. Hoje, estavam juntos. Aliás, acho que vi todas as centrais, partidos, grupos, coletivos e fracções de esquerda atuantes dos dias de hoje que conheço.

Os dois carros de som que estavam ao lado vieram junto do carro da Pública, e formaram uma barreira contra os projéteis da polícia. A massa não parava de chegar, e novas ondas arremetiam contra o rochedo policial. Um menino negro avisava aos amigos “cuidado quando ouvir tiro, eu fui atingido por essa bala de borracha”, mostrando o projétil, chamado eufemisticamente de “elastômetro”. Vi duas bandeiras LGBT, uma da UJC. Vi uma camiseta com o rosto de Malcolm X, com o texto “Não há capitalismo sem racismo”, e outra camiseta com o Mandela. Vi ima bandeira do NOS, uma da ANEL, A banda toca Cazuza, “Que país é esse?”, mas não me toca. Não gosto muito dele.

O carro de som cobra do comandante o respeito ao acordo firmado entre eles, de poder ocupar o gramado. O oficial responsável pela operação é chamado pelo nome muitas vezes. “Somos mais de 50 mil trabalhadores aqui, respeito! Exijo respeito!”. A certa altura, a multidão grita em uníssono, umas 5 mil pessoas: “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da policia militar!”. Vi banheiros químocos sendo rolados no chão para servirem de barricada contra os tiros. Teve uma hora quando a polícia atirava contra as pessoas no carro de som, o que não vinha fazendo.

Uma moça do MTST distribuía uma máscara de boca. Pouco adiantava. No geral, é sempre possível observar onde detona a bomba de gás e sentir o vento. Muitos chutam o aparato de volta. Mas ficar de olho na direção da nuvem e se esquivar dá resultados. Mas nem sempre o vento colabora, e há nuvens invisíveis que te envolvem num aquário ardente. O rosto queima e os olhos e nariz ardem muito. Dá um desespero. Mas tem é que sair da nuvem e deixar queimar: arde mas passa, e não esfrega os olhos. Água não adianta.

O gás foi muito usado, por mais de três horas. Muito agressivo. Um moço contou que o helicóptero da polícia não apenas atirava as bombas, mas também usava de suas hélices para espalhá-lo. Passei a reparar e acho que é verdade. Muita gente passou mal com a pimenta e lacrimogênio.

A essa altura, manifestantes começaram a usar escudos. Valia tudo: uma placa “Nada temos a Temer”, uma placa redonda de trânsito E, faixas de pano. O orador no carro de som surtou “Vocês não vão impedir este ato! Quando a PM quer aumento vocês vão quebrar o Congresso! PM, fique quieta, recue! Vocês não têm a autoridade, vocês não têm o direito!”. Falou o deputado Vicentinho, o único orador de partido que ouvi, e rogou à PM que parasse a agressão. O povo cantava: “não adiante reprimir, o seu governo vai cair!”.

Vi nessa hora o estandarte laranja do Rua, uma bandeira “Tribo UFRJ”, uma negra com o A anarquista, uma da LJR, uma vermelha e negra, “GT Antiracismo” da CUT, uma bandeira do sindicato dos Caravaneiros, uma de Minas Gerais, da LSR, UBES, UNE, Kizomba, Liga Operária, Enegrecer e FASUBRA. Vi uma camiseta “Morro do Timbó, Baixa do Sapateiro” e outra vermelha “Ajax Futsal”. Olhei para trás e vi balões até a altura do viaduto da Rodoviária. Vi também duas colunas de fumaça negra à nossa direita, contras as quais um drone branco se destacava. Depois vi que os fumos originavam de uns banheiros químicos e de um ministério cujo térreo ardia.

Perguntei a um senhor a hora e eram 15:20h. Percorria agora a zona de retaguarda. Muitos jovens e coletivos, sentados e de pé. Certas agremiações são nacionais, e dava para notar que uns cuidavam dos outros e construíam intimidade na manifestação. Este é um espaço muito importante, o do encontro, que o carro de som (e a polícia) não deixa formar. A rua é educativa nesse ponto também, e “permanecer nas ruas” precisa significar formar fóruns de escuta e conversa. O púlpito precisa ser evitado. Vi um pessoal do Território Livre, da ADUSP e ANDES. Vi uma bandeira autonomista RECC, uma da JCA, uma do Faísca, do PSOL e outra do MTST. Vi um moço com a camisa do Santos FC onde pichara “Fora Temer!”, e outra camiseta “MLPS Vidreiros”. Muita camiseta preta também. Vi um batuque do Faísca e o pessoal do Arrua e do Levante popular da Juventude, alguns muito jovens, de 15-20.

No geral da manifestação, achei muito diversa a composição das pessoas, e as idades iam dos 20 aos 50, bem equilibrado homem/mulher. Encontrei T, que disse que vira o Boulos.

Um carro de som diz “somos todos filhos de Zumbi”. Depois anunciou que havia um homem baleado ali perto, e pedia socorro aos bombeiros. Disse que ele fora atingido por arma de fogo, o que foi confirmado depois na imprensa. Daí subiu um policial civil que subiu o tom das falas. Ele falou duramente contra a ação da PM: “É covardia, o que que é isso, meu irmão? É por isso que o Brasil está nesse estado. Vocês estão fudendo com nós. Mire naqueles que estão atrás de vocês! A família da PM está sendo defendida aqui, respeita porra! Respeito! Cadê a disciplina militar? Cadê o comandante da PM?”. Vi essa atitude combativa quando policiais civis e penitenciários aplaudiam a ação de black blocks e demonstravam respeito à meninada que fazia barricada e enfrentava a chuva de balas e bombas. Eles avançavam pouco a pouco em direção à linha de atiradores e tentavam atingir os policiais com pedras e, vez ou outra, rojões.

A certa altura a banda começou a tocar o hino nacional em ritmo de rock. Foi bizarro, agora a linha de frente contava com várias barricadas e o pau comia. Eram 16h e, apesar de muita gente espalhada e insistindo em ficar e realizar o ato, os oradores começaram a desescalar o evento. A PM vinha avançando em varredura e já não havia nenhum manifestante entre a grade e os carros de som, que por vezes ficavam totalmente envolvidos por fumaça tóxica. Os tiros vinham dos dois lados, além da frente do ato. Três helicópteros sobrevoavam o local e atiravam bombas na manifestação.

A bomba de gás nem assusta muito, o pior é a de concussão. Mas quando o gentil arco do artefato cruza o ar em sua direção, não dá para saber se é de gás ou de explosão. Ele rola na grama graciosamente, como um fliperama sinistro. Mas o pior mesmo é a bala de borracha, que zune na altura dos olhos.

Fomos saindo e, mesmo de costas, a fuzilaria continuava. Um orador no carro de som dizia que “estamos saindo deste ato com muito orgulho!”, e chamou a Greve Geral. Vi uma faixa da “INTRATEL”, cujo símbolo era um desses emojis da carinha sorridente, com um headphone. Deve ser dos trabalhadores do telemarketing. Vi um pessoal do SINDIPOL, que é da polícia civil. Vi uma camiseta com toda a letra do Raul Seixa, “Gita”. Um moço da Força sindical ajoelha, cuspindo e tossindo muito. Um grupo de policiais penitenciários fazia um sorridente selfie de grupo no meio do gramado agora meio vazio. Vi um grupo de petroleiros também fazendo sua selfie coletiva.

Voltamos pelo lado dos Ministérios e vimos o estrago. O da Fazenda queimou bem, os outros menos. Nos edifícios estragados, vi as seguintes pichações, dentre outras: “Desgraça Punk”, “Não ao silêncio”, “Greve Geral”, “Morte à Burguesia”, “Porcos Safados”, “Favela vive!” com o A anarquista.

Chegamos ao Museu Nacional, já na extremidade da Esplanada. Ouvimos umas mulheres gritando “vaza, vaza!”. Vimos então que uma coluna de 40 PMs enquadrou três desavisados adolescentes que pichavam “Fora Temer!” na parede do museu. Juntou gente (tinha muito manifestante) gritando “Não acabou, tem que acabar, EQOFDPM!” e “Fora Temer!”.

Vimos a Força Nacional no caminho de volta, mas não o exército. Vários grupos de PMs estavam localizados em vários pontos da cidade. Depois vieram notícias da covarde atuação que é usual: a perseguição de grupos pequenos de manifestantes submetidos a todo o tipo de agressão.

Subimos ao CONIC para uma merecida cerveja. A caminho do lugar, uma mulher cutista estava contando que sua irmã telefonara dizendo que Temer tinha decretado estado de sítio. Disse que ela chorava ao telefone. Assustamos um pouco, mas esperei para ver o que era, os boatos crepitam em manifestação de rua. Achamos um boteco repleto de sindicalistas, e também o G, que estava numa mesa. Ele esclareceu que de fato era um decreto presidencial chamando o exército a manter a ordem, mas com limite de data e circunscrito a Brasília. Depois o decreto foi anulado, dadas as críticas que recebeu. Mas uma linha importante foi cruzada e tenho certeza que, em outro ambiente político, de maior consenso ao redor de um presidente, a medida passaria por legal. O STF não peitaria e ficaria por isso mesmo.

Vimos na tela dos botecos o programa do Datena, que mostrou uns BBs batendo em policiais, o que foi muito comemorado. Vimos imagens do Rio de Janeiro. Quando passou um grupo de 7 PMs, patrulhando aquele espaço, a galera explodiu em “Fora Temer!” e “Diretas Já!”. Os PMs voltaram e encararam com rosto fechado por um tempo e depois saíram.

Vimos as notícias do dia depois. A PM do Pará fez 10 mortos em despejo. Vimos os seis tiros disparados por um PM na cidade. Essas irrupções de violência parecem convidar coordenação tenebrosa. Vimos as repercussões da Cracolândia, incluindo uma ocupação de secretaria municipal. O ato espontâneo da Paulista. Vimos os tumulto nos trâmites das reformas, o empurra-empurra e tapetão no Congresso. O JN comprando o discurso do caos e a necessidade da intervenção das Forças Armadas. O JN defende Reinaldo Azevedo de uma maneira que não fez por ocasião da divulgação do grampo de Lula e Dilma ou no caso de Eduardo Guimarães.

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