Mulheres, ocupações e a finitude radical das subjetividades políticas

por Edson Teles

Um edifício que até pouco tempo atrás estava abandonado. Agora, dentro se encontram mais de 100 famílias. Passam os dias refazendo as ligações de água, luz e esgoto, se organizando para ocuparem de maneira o mais equânime possível os apartamentos. Experimentam a produção de um comum em meio a tamanha heterogeneidade existencial. São migrantes do nordeste brasileiro, imigrantes da África, mundo árabe, América Latina, paulistanos, cariocas, mineiros. São várias as línguas faladas, mas nada que impeça a comunicação, ao contrário, funcionam como um convite ao encontro do diferente. Estas são cenas do filme “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé. Mas podem ser vistas em várias ocupações de movimentos populares por moradia.

O Hotel Cambridge foi uma luxuosa hospedaria paulistana dos anos 50, 60 e 70, localizado no coração da cidade, em uma das principais vias do Centro. Como resultado da especulação imobiliária e do descaso dos governantes com a carência de moradias, o enorme edifício permaneceu por vários anos fechado, abandonado e deteriorando-se. Os movimentos de luta por moradia, como em outros edifícios da cidade, ocupou e iniciou a revitalização do espaço. O filme documentário nos apresenta uma experiência política alargada que poderia auxiliar na reflexão sobre o atual contexto das lutas de resistência.

Desde o golpe contra a presidente Dilma Roussef se tem conversado, buscado, debatido sobre qual a saída para lidar com as intervenções cancerígenas em ebulição. Como resistir? Parece ser a esta a principal questão. Atônita ou surpreendida pelas estratégias autoritárias das elites dominantes, a esquerda se vê sem ou com poucas ferramentas para lidar com a situação. Por outro lado, se experimenta no país ricas formações políticas em que outros modos de intervenção nas relações sociais associam demandas práticas e cotidianas com a movimentação de novas subjetivações. Uma delas, me parece, está registrada nas cenas do filme de Eliane Caffé. Trata-se da quebra do paradigma masculino, branco, hétero, viril, universais que ainda teimam em ditar normatizações à ação política.

Talvez o maior registro de subjetividades da ruptura e da resistência no filme esteja na presença de mulheres enquanto eixo organizador das relações humanas, éticas e políticas dentro da ocupação Cambridge. Enquanto uma das principais personagens, Carmem Silva interpreta a si mesma como líder da ocupação. Sempre à frente das ações, assessorada por outras mulheres, Carmem tem de lidar com diferenças culturais e sociais as mais variadas, vulnerabilidades existenciais, carências e fragilidades inerentes às condições de vida daquelas pessoas. Além da organização interna do movimento, da gestão do local e de suas instâncias políticas, as lideranças precisam se haver com as instituições do Estado que constantemente exercem pressão sobre o movimento. Desde a Polícia Militar, passando pelo sistema judiciário, até a interferência do Conselho Tutelar, ameaçando recolher uma criança cuja mãe tem dificuldades em exercer suas duas ou três jornadas diárias de trabalho.

Também na experiência do imigrante dentro da ocupação a questão de um lugar social da mulher é tematizado quando vemos os homens dentro da Lan House do prédio se conectando com as mulheres que ficaram nos campos de guerra ou em meio aos conflitos sociais nos territórios de origem daqueles indivíduos. Uma mulher se comunica de dentro de um edifício, na faixa de Gaza, cujo cenário de fundo é um espaço urbano destruído por bombas, bem como a parede de seu apartamento está destruída. Neste caso, a ocupação vem de outro Estado, o israelense.

O que mais chama atenção, do ponto de vista de novos agires, não é tanto a presença de mulheres em funções políticas e fortemente marcadas pelo masculino e suas caracterizações generalizadoras. Isto já vemos acontecer há tempos, nos mais diversos modos do agir, em movimentos e instituições. A diferença, portanto, não está nesta “presença”, mas nas suas funções ou efetividades. O processo político passa por mudanças e, neles, subjetividades diversas e singulares são a demanda dos indivíduos em movimentos. Se habitamos um mundo biopolítico, o corpo deve ocupar um outro espaço, ou estar nos atuais com outra postura.

As subjetivações, ou subjetividades coletivas, para se produzirem na diferença e por suas próprias singularidades, entram em choque com concepções universalizadas do chamado sujeito político. Os processos de suas produções, bem como suas existências, perecem, têm data de validade, são finitas. As possibilidades eternas, os modos de relações sociais e humanas com base em valores universais, a imobilidade do indivíduo ao se manter dentro de padrões do agir diminui as pretensões e possibilidades de intervir no curso dos acontecimentos. Produz o engessamento da política aprisionando as resistências em caixas pré moldadas.

Se, ao contrário, compreendermos as subjetividades, o mundo que habitamos e as nossas existências pelo viés da finitude radical, teremos a abertura para formas de resistência nas quais estratégias, mecanismos e tecnologias políticas também serão finitas. É aí que as mulheres, no caso do filme, se encontram com as transformações do contemporâneo. Sua existência social e afetiva já experimenta o viver dinâmico, com rupturas e transformações constantes. Se a finitude é a condição subjetiva da ação, com implicações efetivas nas máquinas políticas, então a questão se coloca de modo mais alargado: trata-se de se questionar o que estamos fazendo neste cenário, qual território me é acessível, por quanto tempo nos encontramos em determinado contexto e o que se faz com ele? O que e como se pode modifica-lo? O que em mim posso transformar para que a política também se modifique? Nesta abordagem é interessante considerar a ação política como processos em elaboração e permanente mudança.

Para se pensar em atos, éticas e estéticas de resistência seria favorável ter em conta que as formas de dominação se atualizam e se modificam. Inclusive, limitando as possibilidades de dessubjetivações para manter o controle dos indivíduos. Resistir, neste caso, não é somente um ato de grupos sociais organizados, mas também a ação de coletivos ou indivíduos não compostos para a luta. São as sensibilidades poéticas, funcionais, performativas. Corpos e afetos que se reescrevem através de outras configurações urbanas, políticas, amorosas. A proliferação de uma rica formação política ganha em opções com um agir ciente das finitudes e da não eficácia do universal.

É difícil hoje se esperar pelo líder, pela direção e condução de seus atos por meio da “organização” ciente de um “papel histórico”. Não se trata de desprezar os líderes, de desconsiderar a memória das lutas populares, as formas tradicionais dos movimentos e partidos. Trata-se de somar a tudo isto – que, de certa maneira, já operamos há algum tempo – toda e qualquer criação de intervenções e afetos associados às questões dos negros, das mulheres, das pessoas LGBTs, dos que não possuem, das minorias. Em certos casos, trata-se mesmo de substituir o tradicional pelo novo e inesperado. A “cerimônia do adeus” ao que nos pertencia pode ser uma liberdade para a criação do novo. E se finito, inesperado, fora do controle, mais de resistência se pode apreender com o acontecimento.

A ação política não estaria nos modelos, tradicionais ou não, mas no cruzamento e na correlação dos componentes heterogêneos, dos processos finitos e radicais. E, por natureza semelhante, esta seria mais a política das sensibilidades afins às mudanças e à percepção do novo.