O caminho esquecido contra o que ainda nos consome

Por Salvador Schavelzon para Urucum

 

Da ressaca de todas as crises da esquerda que atravessamos ficamos com algo: o mundo não é mais só um.

Encontramos assim, por todo lado, fragmentos de um caminho que se perde entre grandes aparelhos que pretendem controla-lo tudo, mas que sempre reaparece, servindo de trilha para quem precisa fugir ou resistir em algum lugar.

Tradutores com horta no quintal; alguém sempre pronto para panfletar; bioconstrutor que conhece os segredos das bananeiras; xamã que nunca mais vai voltar para o posto da FUNAI; professora que interrompe a lição para falar da morte do ex aluno na quebrada; pescador que conhece as estrelas; leitor do Castoriadis; zapatista; demitido sem direitos que joga uma pedra contra dependência estatal; assembleias de populações contra a mineração e rachas dissidentes que abandonam assembleias ou grupos para fazer alguma ação ou posicionamento junto a um rio, numa biblioteca ou no banheiro de um bar.

No exato momento em que o patriarca empreitero confirma a colaboração da cúpula do PT com os empresários, que militantes de oposição sindical já advertiram faz tempo; ou quando se confirma que, no essencial, a forma em que a esquerda pensa o País e o administra não difere da dos seus rivais partidários, é preciso fazer uma marca no tempo e fazer algo para que também o restante da esquerda deixe de ficar pendurado com tristeza aos movimentos e estratégias desse projeto derrotado desde dentro. Nesse momento, as formas de fazer política, os fins da organização da esquerda e o sentido da luta deve ser re-avaliada. A cumplicidade com o discurso e ação do desenvolvimento; a adaptação ao autoritarismo do Estado e sua máquina repressiva e de controle social; a política e organização da vida deixada para uns poucos; faz necessário unir expressões dispersas de fora dessa política e civilização.

É preciso alimentar contradições dentro das lógicas normalizadas em toda instituição, espaço social ou setor, com  novos feixes de conexões em contínua mutação e calibragem, que poderão resgatar a dignidade e construir alternativas de quem pôs o peito para as balas em conflitos do campo, de quem acredita que existem outras formas de lutar ou desertar, ou de quem simplesmente não abaixa os braços para o que seria o inexorável, o único possível, recusando assim as armadilhas da nação, da pacificação religiosa, da promesa de revolução que sempre será no futuro, ou da fraqueza, em formulações políticas que reproduzem entre nós lógicas da empresa, do neoliberalismo ou do Estado, e de quem faz tempo está do outro lado.

A tradução política da derrota não tem uma única leitura possível. Ao contrário, o que está aberto hoje é um mundo político mais amplo, com mais vozes, com contribuições marginais, estéticas, de uma nova conceição do público que tem ferramentas para recusar um mundo bipolar: canteiros vivos contra a mercantilização da natureza, cooperação tecnopolítica aberta para resolver problemas práticos de infraestrutura, debate sobre caminhos que não assumem que devamos escolher entre neoliberalismo e neokeynesianismo, entre mercado e estado, entre fascismo e conciliação com os verdadeiros donos do poder ainda colonial.

Ficamos sem escolha além da ruptura com todo aquele que em lugar de lutar contra a máquina, trabalhe para ela. Isso implica também recusar os marcos interpretativos com que as formações políticas que nos querem sempre atrás deles leem a realidade. Contituidos eles mesmos como máquinas também, que só olham para cima, levando tudo para as respostas institucionais que não dizem nada, e negando tudo que é invisível para um poder que eles escolheram representar, e cujos dispositivos adoptaram como modo de funcionamento.

Sem heranças pesadas que devamos carregar de forma penitente pelo resto dos dias, se torna mais importante questionar e inventar, que obedecer e acompanhar. Espíritos de luta percebem nesse novo momento de refuncionalização das ferramentas, que quem não rompe e se movimenta se transforma em um deles, e que sair da casa dos que exigem lealdade até na traição, é preciso para não morrer como eles; para não ser cortejo fúnebre de um morto que ainda é capaz de nos chantagear, chamando para a praça vazia, centro de uma sociedade que não existe mais, centro de nada que eles ainda chamam de sociedade. Só a autonomia, como poder político que se mantém longe de cúpulas fechadas e detém a decisão na mão de todos, se mostra como caminho para quem não queira ser também parte desse mundo morto-vivo que pretende nos governar e dizer com quais palavras temos que falar.

Esse mundo contra o qual lutamos se pretende universal, mas se constrói localmente como filial individualizadora e totalizante. Se apresenta, com versões de direita ou progressistas, como mundo de escolhas obrigatórias que elimina tudo que não consegue assimilar, numa limpeza ontológica que só sabe de uma política como esfera elevada e elitista, separada na transcendencia onde o pacto secreto, o sequestro das vontades majoritárias e o avanço que deixa diferenças no caminho são então permanentes.

Nesse mundo contra o qual lutamos quem não se disciplina é apenas tolerado ou reconhecido como crença, cultura, festa, passado, identidade. Os mundo da terra, contra o estado, da luta que abre mundos e situações libertárias não acredita nessas hierarquizações deterministas e separações. Contra isso a luta inventa novas linguagens, hackeios e organiza também materialmente uma classe subalterna de diferenças e multidões. As está inventando com amnésia e memória em doses certas, como tecido nebuloso de organização fantasma que se ativa quando é necessário, preparando combatentes de um mundo novo que não separa o que pensa do que vive e, assim, reconhece vida e política onde eles apenas enxergam mercadoria e representação do mundo sob controle.

No território arrasado pela extração de minerais, respira o fantasma de uma floresta. Esquecemos quem se coloca por cima de nós como líder  ou chefe, mas não de nossos mortos e de quem lutou ou não quis ser um dos outros. Com outra temporalidade, distinta da do progresso e da burocratização; num lugar que não é possível ser reduzido ao espaço que eles sabem vender ou tornar produtivo; continuaremos aqui, atrapalhando seus planos; inventando outras formas de falar e de ouvir o que para eles não existe. Nas greves que duram para sempre, abrindo assim novas possibilidades não capitalistas nem do trabalho; ou mesmo na autonomia de quem não consegue trabalho ou faz com ele o que quer, novos antagonismos revolucionários se pronunciam.

Nas ruinas de Belo Monte, na memória esquecida de junho de 2013, nas guerras de mundos cosmopolíticos que libertará rios na cidade ou encontrará lugares além do agronegócio, como grito coletivo ou pelas bordas, imperceptivelmente, o comum e o não representável por igrejas, estados e partidos continuará falando para quem tenha vontade e vigor para continuar em pé.