Acácio Augusto
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O principal agente da violência nas sociedades modernas é o Estado. Ele se define e mantém sua dominância pelo exercício dela. Ao contrário do que se imagina, devido ao estereótipo vinculado ao futebol e ao carnaval, o Brasil é um país extremamente violento. Esta violência está diretamente ligada a uma polícia com alto grau de letalidade. Só em 2015, foram 58.383 pessoas assassinadas[1], 160 mortos por dia. Isso, segundo dados oficiais do governo apurados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016. Destas mortes, 3.345 são atribuídas diretamente à polícia, mas deve-se considerar uma série de fatores que ligam as outras mortes indiretamente à ação policial. Em geral, essa letalidade é aplaudida pela grande maioria da população, que há muito tempo se regozija com um populismo punitivo alardeado pelas mídias e outros setores da sociedade.
Além da violenta e predatória história colonial e o fato do Brasil ser o último país das Américas a abolir a escravidão, fatores recentes contribuem para essa extrema letalidade e uma violência social letal praticamente naturalizada. Em 1964 o país sofreu um golpe civil-militar que inaugurou a série de golpes na América do Sul com ingerência dos EUA como forma de garantir a zona de influência em um contexto de Guerra Fria. No entanto, quando o regime civil-militar teve fim, em 1985, a chamada “transição lenta, gradual e segura” não extirpou da vida pública os diversos agentes sociais que sustentaram e se beneficiaram do período de exceção: de grandes conglomerados comunicacionais até setores das oligarquias regionais rurais, além de uma pequena elite urbana de hábitos colonizados. A chamada abertura política e/ou democrática foi resultado de um pacto entre as elites, ainda que atendendo às demandas da chamada sociedade civil organizada. Este pacto corresponde às novas diretrizes planetárias, sintetizadas pela ONU e suas agências, em contexto de derrocada do mundo soviético ao leste do planeta e sob o signo do que se chamou de “nova ordem mundial”.
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No ocaso do século XX, mais precisamente na abertura do século XXI, o Brasil viverá um ciclo de governos chamados progressistas. Inaugurado por dois mandatos de um sociólogo de tendências marxistas, vinculado a um partido de nome “socialdemocrata” mas de política neoliberal, e seguido por um ex-líder sindical e uma ex-guerrilheira vinculada à luta contra a ditadura civil-militar, ambos pertencentes ao PT (Partido dos Trabalhadores), que gaba-se em ser o maior partido de massas das américas. Essa sequência de governos em uma democracia formal e sem ingerência dos militares na vida política inaugurou um ciclo de prosperidade, despertando fortes esperanças tanto interna quanto externamente: um país que finalmente “estaria dando certo” ou no caminho de ser grande. O recente processo de impeachment, concluído no segundo semestre de 2016, que derrubou o segundo mandato da presidente eleita pelo voto direto e majoritário criou uma fissura, em alguma medida inesperada, que acabou interrompendo esse ciclo progressista de governos, mas não alterou a racionalidade governamental dominante. Isto faz com que muitos no Brasil, em especial os setores próximos ao governo deposto, gritem que foi um golpe! Seguido de algum adjetivo: parlamentar, midiático, judicial ou os três juntos.
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De fato, o processo que derrubou a presidente foi eivado de manobras jurídicas, jogos com a opinião pública e interesses mesquinhos dos representantes do poder legislativo e outros setores interessados. A operação de saneamento do Estado, encabeçada por um juiz de província elevado ao status de herói nacional, nomeada como Lava Jato foi o ponto de apoio dos setores da mídia e da massa conservadora da sociedade para colar no partido que até então ocupava o governo federal, o PT em aliança com o PMDB, o estigma de corrupto e tudo mais de abjeto que possa existir na política nacional. Somou-se a isso uma intensificação de posturas conservadoras e fascistas da sociedade, tanto nas classes médias quanto nas classes populares. Na última década, e junto ao histórico racismo de Estado, o ódio ao diferente tem ganhado campo amplo no país, se amplificando nas redes sociais digitais e encontrando representantes políticos que incorporam esse discurso. A ponto de se defender, abertamente, a volta dos militares ao comando do governo executivo. No entanto, seria equivocado, ou mesmo simplista, atribuir à deposição da presidente a culminância de uma escalada autoritária no país. Como se, após o chamado golpe, a democracia teria sido solapada e a política do país sofresse uma guinada de cento e oitenta graus. De uma perspectiva anarquista, o que se passa hoje no Brasil é consequência lógica de um regime democrático estatal representativo que só se mantém por uma extrema judicialização da vida e da política e uma prática de governo que se reduz cada vez mais a produção hiperbólica de segurança, a despeito de qualquer outro valor político e social, até mesmo em detrimento da democracia formal e dos valores elementares de uma sociedade moderna com o mínimo de liberdade individual, como amplo direito de defesa diante de um tribunal. A questão central é que isso não se iniciou com a deposição da presidente. Mesmo que a consumação desse fato tenha gerado, na linguagem dos constitucionalistas, uma insegurança jurídica e, com efeito, tenha legitimado setores conservadores que viam no governo do PT uma ameaça comunista, por mais absurdo que isso seja.
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Os 13 anos do governo desposto se vangloria de ter atingido uma série de metas estabelecidas pelos organismos internacionais, em especial a ONU e suas agências como PNUD e UNICEF. A principal delas seria a erradicação da miséria extrema por meio de complementação de renda aos mais pobres, cobrando contrapartida como obrigatoriedade de matrícula escolar dos filhos e vacinação regular, ou seja, ampliando o controle estatal sobre os corpos, em especial, das crianças. Além disso, propagandeia uma série de políticas sociais ligadas à ampliação do crédito no varejo, programas de financiamento de casas populares e programas de crédito estudantil. Em resumo, o governo democrático de esquerda no Brasil promoveu uma política de inclusão pelo consumo que produziu uma massa de novos endividados, algo que os bancos, estatais e privados, agradecem. Além de favorecer, por meio dessas políticas, os valores característicos da racionalidade neoliberal, metamorfoseando proletários em proprietários, pobres em empreendedores de si. Mas não só. Este governo esteve à frente de megaprojetos desenvolvimentistas, como a construção da Usina de Belo Monte, com prejuízo aos povos indígenas e ribeirinhos. E como toda socialdemocracia no mundo pós-Muro de Berlim, investiu fortemente em segurança, como mostrou Loïc Wacquant em suas pesquisas sobre as prisões e política de segurança nos EUA, Inglaterra e França. O governo federal do PT criou uma nova polícia repressiva em 2004, a Força Nacional de Segurança; levou adiante um programa de superencarceramento já iniciado no governo anterior; despejou rios de dinheiro para a política de pacificação das favelas no Rio de Janeiro, as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora), face interfronteiras da MINUSTAH, intervenção militar da ONU no Haiti capitaneada pelo exército brasileiro; enfim, um dos últimos atos da presidente desposta foi a criação de uma Lei Antiterrorismo (lei 13.2060/2016) que abre precedentes jurídicos brutais para criminalização dos movimentos sociais. Além do fato de que hoje, há menos de um ano do chamado golpe, o partido que se diz golpeado se vê às voltas com alianças junto aos partidos que perpetraram o tal golpe. Uma retórica, no mínimo, pouco convincente.
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O ponit of no returne da política e das lutas no Brasil foram as jornadas de junho de 2013, manifestações inéditas e espetaculares em todo país. Iniciada em São Paulo, em meio aos protestos contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, essas manifestações colocaram em xeque a narrativa do Brasil grande e do país que finalmente deu certo. Grandeza que seria confirmada com a recepção de megaeventos planetários como a RIO+20, da ONU, a Copa do Mundo de Futebol, da FIFA, e as Olimpíadas, do COI. Respectivamente programadas paras os anos de 2012, 2014 e 2016. Muitos do que foram às ruas alertavam que nesse Brasil grande pobres, pretos e indígenas seguiam sendo assassinados pelo Estado; que as desigualdades históricas seguiam reforçadas; que os antigos perseguidores do presidente sociólogo, do presidente sindicalista e da presidente guerrilheira, são agora seus aliados de governo. Metamorfosearam-se de perseguidos em perseguidores. A emergência do ingovernável nas ruas em junho de 2013, que seguiu adiante, principalmente contra a Copa e as Olimpíadas, expôs o intolerável de qualquer governo, a insuficiência da democracia, e abriu uma brecha para manifestações de revoltas antipolíticas que não cabiam em planos e planilhas dos atuais gestores da miséria no país.
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O governo, mesmo ungido pelo título de progressista, de esquerda e democrático, agiu como agiria qualquer Estado: reprimiu duramente os protestos, promoveu perseguições e investigações. Prontamente, a imprensa e diversos analistas políticos, à esquerda e à direita, produziram uma enxurrada de “análises”, diferenciando manifestantes “pacíficos” de “vândalos”, estes últimos identificados entre os anarquistas, autonomistas não ligados aos partidos e aos movimentos sociais não alinhados ao governo e, principalmente, praticantes da tática black bloc. Com os vândalos expulsos das ruas pelas bombas e cassetetes da polícia, e muitos respondendo a processos criminais, os chamados manifestantes pacíficos foram gradualmente ocupando essas ruas. Mas desta vez, vestidos com a bandeira do Brasil e pedindo maior moralidade dos governantes, maior punição a infratores da alta e da baixa política, e com demandas que iam da deposição da então presidente à pedidos de nova intervenção dos militares, além de regulares manifestações de ódio à gays, racismo institucionalizado e clamores por uma ordem mais rígida. Era comum entre esses manifestantes, ao invés do embate, a empatia com a polícia, tirando fotos para depois espalhar pelas redes sociais digitais. Enfim, a centralidade do Estado e sua violência foi reposta, após brutal repressão ao ingovernável e um conturbado processo eleitoral em outubro de 2014, começo da reação que visava conter a potência das ruas.
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De uma perspectiva anarquista, não há o que lamentar desse processo, a não ser seguir lutando contra a violência do Estado e as explorações do capitalismo. No entanto, se hoje, janeiro de 2017, o país se encontra às voltas com um presidente que não foi eleito diretamente pelo voto, com o crescimento assustador de um discurso de ódio contra negros, gays, mulheres e todo tipo de manifestação de diferença e de contestação política, além de uma violência que se alastra por meio da polícia em manifestações de rua até decapitações em presídios de todos país, isso se deve ao fato de que, no momento em que a violência de Estado foi colocada em xeque nas ruas, as forças de esquerda que então ocupavam o governo fez de tudo para repor sua centralidade. Funcionou como aparador e contentor da revolta para depois ser chutada por seus próprios aliados e sócios nos negócios e negociatas do Estado. Hoje chora a falência de um Estado de Bem Estar Social que, a bem da verdade, nunca existiu aqui. A operação estatal mais bem sucedida como reposta às revoltas de junho de 2013 foi justamente a diferenciação entre vândalos e pacíficos, esta abriu caminho para um processo de pacificação brutal, todo efeito institucional a ser lamentado é posterior. E essa distinção foi operada pelo governo democrático e de que esquerda, reforçada a todo tempo por seus chamados “intelectuais orgânicos”, chegando ao absurdo de dizer que anarquia e fascismo eram equivalentes.
Chamem de golpe ou impeachment, a atual situação política de instabilidade no Brasil é a sequência dos históricos golpes perpetrados aqui por oligarcas, militares e dirigentes/gestores políticos, de esquerda e de direita, que nunca vacilam em repor e reafirmar a centralidade e a violência do Estado. A despeito de questões conjunturais extremamente preocupantes, o Brasil segue, como antes, tendo a polícia que mais mata no mundo. E como sabe qualquer anarquista, a polícia é o golpe de Estado permanente.
Não há solução diante disso, apenas a luta contínua, ou a pequena guerra (petite guerre), como chamava Proudhon a atividade de luta rebelde contra a miséria das guerras de Estado, travada além das fronteiras e contra aqueles declarados inimigos internos. Desde junho de 2013, as lutas autônomas e o interesse pela anarquia cresceu no Brasil, mas também surgiu um movimento conservador que, diferente de outros momentos da história do país, vai para rua e se organiza aos moldes de um “movimento social”, reivindicando seu espaço no espetáculo político da chamada opinião pública, esse consenso fabricado que acaba incidindo como ditadura da maioria em favor dos interesses da mesma minoria (neste caso, numérica, e não no sentido dado por Deleuze). Estes grupos, a partir do pedido de deposição da presidente eleita, conseguiram dar vazão à todo conservadorismo da sociedade brasileira.
Os anarquistas seguem com suas lutas, enquanto a esquerda institucional luta por hegemonia, tentando reorganizar-se em torno da sua zona de influência juntos aos movimentos sociais domesticados e inscritos na gramática da luta política estatal por reconhecimento e direitos. Nós, anarquistas, seguimos nas ruas, com bandeiras e blocos negros, e nas universidades, com pesquisas e publicações que desafiam a ordem, enquanto minoria potente (essa sim, no sentido dado por Deleuze). Desacatamos a ordem durante o governo de esquerda que agia segundo a governança global da racionalidade neoliberal. Não será diferente agora, diante da nova conformação governamental dessa mesma racionalidade neoliberal que anuncia um ajuste conservador em todo planeta. Não nos interessa a conservação de direitos ou a defesa de um Estado de Bem Estar Social, que ao Sul nunca existiu e ao norte significou a contenção e normatização das lutas. Sabemos que todo direito implica dever para com o Estado, seja ele de que cor for. E quando dizem que a autogestão (mutualismo econômico) e a ação direta (associativismo e federalismo político) são utopias, o que temos a dizer é: utopia é essa busca por paz e segurança projetadas no Estado que habita os corações e as mentes desde a emergência da era moderna. O trabalho de um anarquista é outro. O anarquista é o artífice na construção da vida outra. A luta, para ele, é feita na transformação de si, na luta contra o que somos e em guerra contra a sociedade e o Estado.
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nota: Este breve registro foi escrito originalmente para a edição #123, de fevereiro de 2017, do periódico Slingshot Collective de Berkeley, EUA (http://slingshot.tao.ca/). Não se trata de uma análise de conjuntura, mas um curto diagnóstico histórico-político da situação das lutas no Brasil para anarquistas de outros países. Reproduzo, com pequenas modificações, por dois motivos: 1. Me parece que há algumas questões pouco consideradas aqui sobre a situação política do país, vistas de uma perspectiva anarquista; 2. O periódico circula impresso e em outra língua, logo de difícil acesso ao leitor brasileiro.
Legenda de imagens:
Imagem 1 (Arquivo “ataque à polícia”): Um manifestante black bloc ataca a polícia em manifestação de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Autor: Revista Vice Brasil.
Imagem 2 (Arquivo: “antifa SP”): concentração para o Ato contra a tarifa do MPL, em janeiro de 2016, em frente ao Teatro Municipal de São Paulo. No destaque a bandeira do grupo Antifa SP. Autor: W. Raeder.
Imagem 3 (Arquivo “BB Copa”): grupo de black blocs perfilados contra a polícia em Ato contra a Copa do Mundo de 2014 na cidade do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.
Imagem 4 (Arquivo “BBs”): grupo de black blocs com escudos em ato no centro da cidade de São Paulo em junho de 2013. Autor desconhecido.
Imagem 5 (Arquivo “estudantes RJ”): Dois estudantes em uma escola ocupada do Rio de Janeiro em fevereiro de 2016, com a placa “Foda-se a PM” (polícia militar). Autor desconhecido.
Imagem 6 (Arquivo “contra a olimpíada”): black blocs com sinalizadores em ato contra a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016 no centro da cidade em agosto de 2016. Autor desconhecido.
Imagem 7 (Arquivo “flávio galvão”): grupos de black blocs destroem carro da polícia civil de São Paulo, na região da República em junho de 2013. Autor: Flávio Galvão, da ADVP (Ação Direta de Vídeo Popular).
Imagem 8 (Arquivo “imagem oficina”): grupo de black blocs em junho de 2013 contra a polícia do Rio de Janeiro. Autor desconhecido.
Imagem 9 (Arquivo “leviatã”): Tropa de Choque da PM de São Paulo perfilada para defender a vidraça de um cinema na Avenida Paulista, janeiro de 2016, ao fundo cartaz do filme “Leviatã”. Autor desconhecido.
[1] Dados do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 3 de novembro de 2016, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Disponível em http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-content/uploads/2015/10/9-Anuario-Brasileiro-de-Seguranca-Publica-FSB_2015.pdf