Gilets Jaunes: esperança e desespero

por Frederico Lyra de Carvalho

publicado também em: http://uninomade.net/tenda/gilets-jaunes-esperanca-e-desespero/ 

O cineasta Philip Garrel, como todo grande artista, o parece ter uma boa intuição sobre o momento. No final de uma sessão de Les Amants réguliers, quando demandado para fazer uma comparação entre o momento atual e 1968, o assunto do filme, ele veio com um diagnóstico de época: antes era esperança (éspoir), agora é desespero (désespoir).  

Uma senhorinha parou para conversar e foi logo me dizendo que este era o terceiro final de semana seguido em que ela subia de Bordeaux para Paris vestindo o colete amarelo. De ônibus um tal trajeto dura em torno de 8 horas. Não procurei saber se havia sido esse o transporte que ela utilizou para se deslocar, mas imagino ser o mais provável, afinal este tem sido o padrão. Vir de trem é caro. Se ela veio de ônibus, isto quer dizer que ela provavelmente também voltou com o mesmo transporte. Só aí já são 16h de trajeto. Além disso podemos imaginar que ela não deve ter ficado menos de 8h na rua. Isto é, este era o terceiro final de semana que ela gastava por inteiro para a insurreição. E ela prometeu voltar. É essa energia política que talvez devesse nos interessar mais e que, de certa forma, está dando as caras na França. Esse deslocamento territórial é um dos aspecto fundamental dos gilets jaunes. Como bem observou Eric Hazan, tirando os militantes de sempre, não encontramos praticamente nenhum parisienses na rua, são os provincianos que invadem e param a cidade. E isto é um fato novo, dessa vez “Paris não é um ator, mas um campo de batalha”. Antes era os dois. E eles só sobem para a capital por esta ser a cede do governo e pela visibilidade que dá: “é onde podemos ser escutados” disse-me um outro. Isto serve para observarmos uma outra novidade, que o que de mais impressionante está acontecendo não se dá em Paris, mas nas provincias. De certa forma, é um fenômeno semelhante ao que aconteceu no brexit, onde ficou claro que havia uma desconexão entre a capital cosmopolita e global e o restante do país. É nas cidades intermediárias, nas rotatórias, nas estradas, em acampamentos espalhados pelo país que novas alianças e relações estão se construíndo. Alguns estão acampados nas estradas e rotundas há semanas. Os bloqueios logísticos tem sido muito mais do que simples bloqueios. Mas nunca é demais frizar são, antes de tudo, bloqueios e os amarelos já bloquearam, entre outras, as fábricas da L’Oreal, Monsanto, Vuitton e Airbus. Não está claro que o Estado consiga dar conta dessa fragmentação que parece ter tomado um curso acelerado. Ele não tem conseguido controlar de forma efetiva o que acontece em todas as provincias. Paris é a vitrine da insurreição, mas o principal foco parece estar além, espalhado em vários pedaços por toda a França.

O que não quer dizer que não se passe nada na cidade luz, muito pelo contrário. Nesses dias de sábado de contragem regressiva para o natal, a cidade tem ficado irreconhecível. Parada. O mercado de natal, boa parte das lojas, a maioria dos museus e repartições publicas ficaram fechadas. Vários concertos e peças de teatro foram canceladas, alguns cinemas não abriram. Mas ela não está morta, está com uma outra vida. O “apocalipse” que foi propagandeado durante toda a semana pelas mídias e pelo governo no final se tornou, como era previsível, mais uma fakenews. A propaganda anti-gilets jaunes é intensa, mas não tem funcionado. Embora ele tenha começado logo cedo nos entornos do Arco do Triunfo, foi apenas por volta das 14h que o conflito se generalizou por toda a zona oeste. Uma outra novidade, segundo o mesmo Hazan. Por algumas horas boa parte da cidade era daqueles que por alí tranquilamente andavam. Poucas vezes o flaneur benhaminiano se sentiu tão em casa. Os gilets jaunes passeavam em pequenos grupos pelos quatro cantos da cidade, de um lado para o outro como se a cidade, por aquelas poucas horas, fosse deles. Como se em um improvisado movimento continuo inventassem uma nova maneira de ocupá-la. E tudo isso em silêncio; ouviam se os espectros da cidade e, mais ao fundo, os ecos das explosões. A paisagem sonora era outra. A profanação da rotina da cidade mais visitada do mundo revelou, por alguns instantes, aspectos dela que estavam esquecidos.

“bloqueemos tudo!”

O dispositivo repressivo, no entanto, era enorme. O emprego de violência excessiva já virou a regra. 89 mil policiais foram espalhados por todo o território da França – 10 mil em Paris. Até tanques, do mesmo tipo utilisado na destruição da ZAD, deram as caras na capital. Se somarmos os bombeiros e outros destacamentos policiais esse número chega a 120 mil. Um número pouca vezes visto antes. E isso para um número oficial de 136 mil manifestantes – ou seja, quase um para um. No final houveram quase 2mil interpelações e 1700 detenções preventivas, ou seja, mais de 1% dos que foram para as ruas foram detidos, além dos mais de mil feridos, alguns em estado grave, e uma senhora morreu. Um fato importante ocorrido durante a semana que precedeu a manifestação foi a humilhação sofrida pelos liceanos de Mantes-la-Jolie. Em todo canto esta humilhação foi encenada. No dia mesmo houveram várias prisões preventivas ainda nos carro ou ônibus a caminho que chegavam em Paris, a maioria sob a alegação de serem potenciais participantes da manifestação. O caso mais emblemático foi o de Julien Coupat, um dos supostos autores do Comité Invisible, aquele mesmo personagem do caso Tarnac. Ele foi detido junto com um amigo na zona leste da cidade no momento em que entravam em um carro. Desde o primeiro ato amarelo, a represão tem batido todos os recordes na quantidade de uso de munições, especialmente nas granadas e no gás lacrimogêneo. Embora o dispositivo repressivo tenha, de certa maneira, conseguido segurar e proteger a fortaleza que se tornou Paris, a cidade ficou parada por um dia. Passou longe de qualquer normalidade. E dessa vez a insurreição se espalhou por outros locais da cidades. Não está claro se o Estado tem como seguir com essa política repressiva atual. Ele parece estar chegando no seu limite do uso de pessoal disponível e de eficiencia dessa tática. Um CRS (tropa de choque) deu uma entrevista para o L’Humanité dizendo que preferia tirar uma licença por motivo de doença do que estar do lado errado da barricada, e deixou no ar o fato de que outros colegas talvez tivessem feito o mesmo. Outro sugeriu que depois dos gilets jaunes, viriam os gilets bleus. Mas nunca é demais lembrar que a substituição do Exército pelos CRS é recente, ela data apenas do final da segunda guerra mundial. O dia 08 foi, de certa forma, menos conflituoso, houveram menos barricadas e menos incêndios que o dia 01. Os partidos e algumas organizações mais tradicionais estavam lá em boa quantidade, mas ficaram do outro lado da cidade. Nem todos ainda entenderam este novo papel complementar de retaguarda de um movimento difuso e autônomo. 

Crianças desenham o que vêm e ouvem na televisão, alguma brincam de gilets jaunes nas escolas. Este é o assunto dominante das conversas no metrô e nas salas de espera. Pela primeira vez a violência dos manifestantes é tolerada por aqueles que não saem à rua ou aqueles que saíram mas não partem para a ação direta. Fato novo que a mídia não tem conseguido dobrar. Um dos fatores mais importantes é que aqueles que tentaram se autoproclamar líderes ou representantes do movimento foram desautorizados e quase que imediatamente destituídos nas suas intenções mesmo. Não é para repetir isto que tantos vestem o colete amarelo. A auto-organização absoluta é que reina. Além disso, um dos eixos fundamentais das demandas das ruas é a cobrança pela efetivação do conteúdo do ideário de cidadão republicano. Pede-se um basta no formalismo retórico que esse discurso se tornou. A principal demanda, no fundo, é por justiça social. A extrema direita, embora presente, parece até aqui residual e inoperante. O teor social das demandas tem os afastado. E essa impressão foi reforçada com uma enquete publicada no Le Monde, onde, se por um lado, aparecem temas nacionais, os temas xenófobos não dão as caras. É nessa linha tênue que vão se dar as coisas. O que é uma luta nacional de massas em um país impérial, uma das mais importantes economias do mundo, em plena decomposição da globalização?

Com efeito, é difícil prever o que se seguirá. Mas o certo é que Macron já foi derrotado na rua pouco menos de um mês depois da apoteose geopolítica que foi comemoração aos 100 anos do amistício da Primeira Guerra Mundial. O discurso que ele deu atestou isso. Como nos disse um senhor na rua: “chega de sentir medo sozinho, agora eles também vão ter que sentir medo, vamos mostrar do que somos capazes”. Que foi respondido por um CRS sem maiores arrodeios, olhos nos olhos com um outro manifestante: “se você quiser ficar vivo, fique em casa”. Tudo pode acontecer, inclusive nada. O que se passa é que nesse explosivo tempo presente que esmaga o horizonte com um peso infernal sobre todos os indivíduos, não há como projetar algo para além. O que resta é a ambiguidade da improvisação. De fato este interregno temporal é vivido como um pesadelo por todos. O cineasta Philip Garrel, como todo grande artista, o parece ter uma boa intuição sobre o momento. No final de uma sessão de Les Amants réguliers, quando demandado para fazer uma comparação entre o momento atual e 1968, o assunto do filme, ele veio com um diagnóstico de época: antes era esperança (éspoir), agora é desespero (désespoir).