Frederico Lyra de Carvalho
Nos sábados 17 e 24 de novembro e no 01 de dezembro ocorreram três grandes manifestações na França, todas as três chamadas/encabeças/encarnadas por um novo movimento: o gilets jaunes. Até aqui foi o primeiro movimento a fazer Macron realmente ceder, não teve jeito. De certa forma, ele já foi derrotado. O estopim foi um aumento acima da inflação do preço dos combustíveis, uma pequena faísca que um tecnocrata dessa natureza, com o seu entorno cego, não enxergava possível de ser acessa – ao menos não dessa maneira. Sob a desculpa de ser uma “medida ecológica”, o governo tentou aprovar o aumento e esse foi o mote necessário para a assim chamada “França profunda’’ dar as caras como poucas vezes antes. Eles não querem ser, mais uma vez, os únicos a pagar o preço dos tais “ajustes inevitáveis”: “as elites falam do fim do mundo, nós do fim dos mês”, dizem. Se é verdade não sei, mas fala-se que a manifestação – insurreição? – do dia 01 de dezembro causou a maior desordem que Paris viveu desde Maio de 1968.
O colete amarelo não é uma escolha à toa e, aparentemente, tem menos à ver com a cor em si do que com o que ele pode simbolizar. Sendo um acessório obrigatório em todo veículo, nada mais prático que abrir a mala do carro e tirar o colete para protestar a partir do aumento dos combustíveis. Era uma identificação que estava à mão. Até para os ciclistas é prático, pois os coletes para andar durante a noite são os mesmo. O que se vê na rua é toda uma série de pautas e demandas que tornou nos dois primeiros dias o motim de certa forma difuso. Mas mesmo isso não é uma análise precisa. Depois de uma período de quase três anos de intensa movimentação na França, nada mais natural do que tudo que foi demandado durante esse tempo reaparecesse na rua. Havia um acumulo de várias pautas precisas. Estorou. No terceiro foi uma palavra de ordem que dominou: Macron demission!
Desta vez, ao menos, quando estamos falando de manifestações na França é do país todo e não apenas de Paris e algumas outras cidades onde as lutas tem uma constância, como Nantes. Por todo o país vários pedágios foram ocupados e várias estradas bloqueadas. Um terminal de petróleo perto de Rouen foi bloqueado. Lyon, Bordeaux, Marseille, Toulouse, Saint-Etienne todas essas cidades tiveram jornadas como há muito tempo não ocorria. Cidades médias onde rigorosamente nunca acontece nada, como Tours, presenciaram manifestaçốes selvagens de larga dimensão e violência. Em Dijon o prédio da representação regional foi incendiado. Em Pouzin, vila de apenas três mil habitantes, no meio da região de Ardèches, foram ao todo nove horas de embate. A prefeitura foi incendiada em Puy-en-Velay. Na Martinica os gillets jaunes fizeram algo como uma versão local de rolézinho em um shopping center. Os da vila de Commercy clamam em vídeo pela a criação imediata de comités locais, soberanos e autônomos, além de democracia direta, ou seja: Comunas.
A repressão, no entanto, tem sido forte em todo lugar. Mas foi na periferia, e não em qualquer uma, mas em um département d’autre mer que, para variar, a repressão mostrou toda a sua face. Por enquando, apenas na Ile de la Réunion foi que o exercíto francês foi chamado para intervir. No dia 24 um manifestante perdeu a mão em Paris e no dia 1 um outro perdeu uma mão em Tours, ambos em decorrência do estouro de granadas. No dia 01, era tanta a confusão que quase que faltou contingente policial em Paris. Os CRS (tropa de choque) tiveram que pedir ajuda a outras unidades policiais, além de reclamarem publicamente o fato de que algumas unidades terem que ficar vigiando prédios, ao invés de se movimentarem pela cidade – que é sua especialidade. Segundo o testemunho de um desses choques, em 20 anos ele nunca havia visto algo nessa dimensão. Um amigo manifestante, por outro lado, nunca na vida tinha enfretado a cavalaria, por um instante ele achou que estava em uma viagem no tempo. Ventilou-se até a hipótese de que não haveria contingente suficiente para dar conta no caso de algo ter acontecido em algum banlieue parisiense. Mas, por enquanto, nada ocorreu por aquelas bandas.
Conta-se que vários dos manifestantes estão fazendo as suas primeiras visitas à capital. Boa parte dos que estão de amarelo nas ruas de Paris não moram na cidade, e nem mesmo nos entornos. Ele estão se deslocando para a capital especialmente para participar dos motins e o principal ponto de encontro tem sido o Arco do Triunfo. Praça que, por alguns instante no dia 1, depois de devidamente expulsarem os CRS de lá, foi ocupada por eles, um feito que foi festejado como uma vitória. Tudo isso tem assustado vários turistas na Champs Elysée que não estão acostumados com chamas de carros, latas de lixo ou diversos entulhos queimados. Muito devido ao fato de a cidade estar com obras por todos os lados, as barricadas tem se multiplicado em uma velocidade e quantidade rara. O matérial já está todo lá, dado de bandeja pela prefeitura. E, muito por conta disso, elas tem sido muito eficientes. Faz-se barricadas em todos os lugares. Queimam-se entulhos (carros, lixeiras, etc) aos montes. E aqui vale ressaltar um outro ponto fundamental: embora não tenham vindo fazer turismo, é quase que como se estivessem passeando pois, não habituados aos roteiros mais comuns das manifestaçốes, os gilets jaunes surgem lá aonde raramente há manifestaçốes em Paris. Além de ocuparem a avenida mais conhecida do mundo, Opéra, jardim de Tullerie, Rivolli, Saint-Lazare, Place de la Concorde, Saint Augustin, Bourse são alguns dos lugares visitados pelos amarelos. As luxuosas Gallerie Lafayette e Printemps foram evacuadas devido ao risco de perturbrações. Mas é verdade que ainda falta um passeio pela Torre Eiffel. Dezenas de saidas do metrô foram simultaneamente fechadas (geralmente são apenas uma ou duas). E nada aconteceu do outro lado da cidade, o palco mais habitual para as manifestações. Como não conhecem bem cidade, eles querem ir lá aonde alguma vez visitaram ou no mínimo ouviram falar. O que faz com que as manifestações sejam percebidas e vividas também por aqueles que lá estão apenas de passagem. Não deixa de ser estranho que, sendo a cidade mais visitada do mundo, isso seja uma novidade. Mas como as manifestações ocorrem lá aonde os turistas nunca vão, eles nem se dão conta de que há algo acontecendo. Enquanto posam para uma foto com o Arco do Triunfo ao fundo, há confronto em Nation. Não tem sido assim dessa vez. Foi um pouco, por exemplo, o que aconteceu há dois anos com o Nuit Débout. Como só se ocupava a praça da Répública à noite, e os turistas só passam por lá de dia, ninguém viu nada.
Se em um primeiro momento estavam todos, das diversas esquerdas, céticos em relação ao que era aquilo que estava sendo convocado e tomando rapidamente forma, essa percepção de fato mudou. Eles foram ultrapassados pelo movimento, mas não perderam tempo e já se juntaram aos de amarelo. Se no dia 17 havia alguns grupos de extrema-direita na rua, e as esquerdas não estavam muito presents, no dia 24 essa equação já havia sido equilibrada e no dia 1 pode-se dizer que a presença da esquerda era bastante forte na rua. Neste dia a direita se concentrou nos entornos do Arco, e não foi muito além disso. A sua presença e impacto, na rua, vem minguando ao longo dos dias. No fundo, um dos aspectos principais é a total desconexão com qualquer partido e sindicatos estabelecidos. No entanto, em vários lugares, se é verdade que os amarelos davam o tom, eles dividiam os espaços com vários outros manifestantes. Alguns partidos como o NPA conseguiram ter uma boa presença em Toulouse, por exemplo. Mas são os anarquistas que tem sido os resposáveis por uma combinação explosiva de preto (e vermelho) e amarelo. Mas a principal aliança que foi criada na rua até o momento foi a dos giles jaunes com o movimento negro de periferia chamado de Comité Adama. Se é verdade que a maioria dos jaunes são brancos, o tom negro que Assa Traoré, liderança do movimento, e os seus companheiros trazem é outro, um tom que aponta para a possibilidade de expanção ainda maior da coisa toda. Esse encontro talvez seja até aqui o sinal fundamental e ele foi dado na rua.
A mídia faz o seu papel e tenta a todo custo dissociar os supostos “vândalos”, separando-os dos “civilizados”, dos manifstantes pacifistas. Mas até aqui não tem dado certo e a opinião pública não tem cedido. Prendeu-se um monte de gente na esperança de encontrar aqueles casseurs de sempre. A polícia que esperava prender alguns black blocks, encontrou marceneiros, encanadores, motoristas, pais e mães de família. “Gente comum” que se radicalizou na rua. Pessoas ordinárias, aqueles de quem não se espera esse tipoo de coisa são os que estão quebrando tudo. Muita gente “nati-violência” tem aos poucos cedido e admitindo a possibilidade. Se talvez ainda falte um certo conteúdo, não falta radicalidade e coragem. Mas talvez achar isto seja ainda um raciocínio vindo de uma outra lógica, que não a que tem emergido. Por exemplo, se em um primeiro momento muitos jaunes pediram ajuda ou até mesmo saudavam a polícia, com a falta de aceno positivo destes, além da sua conhecida agressividade, eles logo entenderam que dali não viria nada desse tipo. A mídia estranhou que no segundo e terceiro dia mais gente apareceu com máscaras de gás e melhores equipadas. Como se as pessoas não ganhassem experiência e aprendissem coisas na rua. Atacar policiais, quebrar caixas eletrônicos, queimar carros, essas ações parecem cada vez mais vistas como sendo meios legitímos para destituir Macron. O establishment tenta a todo custo estabelecer um dialogo, mas todo e qualquer representante foi desautorizados. Até o momento, parece não existir a possibilidade da tradicional mediação ou da eleição de algum porta voz do movimento. Entre outras coisas, é contra isso que ele se posiciona.
Durante esta semana os estudantes aderiram ao movimento e várias escolas foram ocupadas ( e evacuadas), além de ter havido uma importante mobilização dos motoristas de ambulância. No sábado dia 8 o novo ingrediente que deve entrar na sopa é uma marcha pelo clima. Por toda o país tem ocorrido várias assembléias e discussões em preparação para o próximo ato, várias organizações estão se preparando para estar presente. Por outro lado, o presidente disse que este não é mais um movimento apenas político, mas um ataque à République. Sophie Wahnisch comparou a mobilização aos Sans Coulottes, e até Anselm Jappe mostrou entusiasmo. Há um sopro de coletividade que parece ter se reencontrado na rua, e no final do outono, o que não é nada comum.