Quando Quebra Queima: revolta dos erês e a doçura da sabotagem

Quando Quebra Queima

A revolta dos erês e a doçura da sabotagem

por: Gabriela Acerbi e André Fogliano

 

os gestos menores que confrontaram o Leviatã com a inocência tumultuada dos erês. A revolta dos erês, poderíamos dizer, sabotou, com alegria, mandinga e sagacidade rueira – como num jogo de capoeira, lúdico e mortal –, a ordem das coisas de um sistema de ensino e de segurança que mata preto e pobre todo dia

 

É sempre estranho traduzir em relato algo quase da ordem do insondável, do inexprimível. A performance quando quebra queima é um experimento desse tipo: faz com que ginguemos com o indizível. Criação do grupo coletivA ocupação, grupo formado em sua maioria por estudantes secundaristas que fizeram parte das ocupações das escolas públicas de São Paulo em 2015, vergando de joelhos a maquinaria de governo do tucanistão, como poucas vezes se viu, a peça é um desdobramento encenado dos meses de molecagem insubmissa que enxameara no correr daqueles dias.

quando quebra queima rodeia e fustiga, em tom de brincadeira festiva, dançante e movente, essa camada intempestiva que emerge das barricadas da revolta. quando quebra queima traz a experiência da revolta por outros meios. Revolta dançada, essa peça-ato é um convite para compormos com os sentires e os desejos destravados nas ocupações. Esse baile (funk) afetivo – sa-sabote, sabote o Estado – coreografa maliciosamente àquele momento em que se imaginou politicamente um ritmo e uma batida outros para a escola, para a cidade e para a própria vida. A peça–ocupação é um jeito de afirmar esse acúmulo de desejo que numa contra-dança maloqueira bandou o Estado no chão, deixando evidente que a política de governo imposta não quer outra coisa senão separar os corpos daquilo que eles podem, de sua força desejante.

O que mais impressiona na peça-ato é, justamente, a exuberância transbordantes dos corpos. Corpos-estranhos, como queria Mateusa, cabelos pluricoloridos em cachos encrespados, transbordando melanina pelos poros, ventando em zigue-zague por entre o público, encarando-os de frente com a coragem da verdade para berrar com jeito: pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro. É preciso encarar o indomável, o insuportável, assim, tete à tete, papo reto, um sorriso abusado de canto, para ser contaminado afetivamente pela semiose fervilhante do levante.

A memória daqueles dias é contada em fragmentos de imagens, fotos, vídeos, palavras, música, traquejos corporais sinuosos, signos que manejam os gestos menores que confrontaram o Leviatã com a inocência tumultuada dos erês. A revolta dos erês, poderíamos dizer, sabotou, com alegria, mandinga e sagacidade rueira – como num jogo de capoeira, lúdico e mortal –, a ordem das coisas de um sistema de ensino e de segurança que mata preto e pobre todo dia. No mesmo espaço em que seus futuros são diariamente sequestrados, colonizados, exterminados, ali, justamente, os erês indomáveis mostraram que o sistema não aguenta a força desses novos corpos-estranhos, preto-feminino-queer, transando e bejiando na boca um mundo outro.

Chega, então, o momento inevitável de pular os muros. Atravessar os portões. Levar a sala de aula para o meio da rua. Cedinho, antes da roda do capital começar a girar. Coloca o pé aqui, salta! Dá-me a mão. Depois as barricadas com as cadeiras, as assembleias da madrugada e o motim desordenado da manhã. As festas, claro, sem zoeira não rola. Entra na roda e ginga. Batalha de passinhos. Exu nas escolas. E comida: macarrão, muito macarrão. Café passado ao tumulto. Açúcar, faxina e uma dose de rebeldia. Fora os macho escroto. La digna rabia é baile de baque solto e paixão. Só que agora os vermes estão vindo: Corre, corre! A PM chegou! Pra onde vamos agora? Cuidado: a primeira pessoa que a polícia vai pegar é uma pessoa preta. medo. Assusta. Mas nosso ódio pelo mundo como tal e o amor pela vida é parecido e hoje a cidade vai ser nossa.

Depois de assistir à quando quebra queima, uma coisa fica evidente: naqueles dias ocupou-se o mundo com artimanha, beleza e doçura. O mundo foi ocupado com sensualidade melanodérmica. Essas ocupações fizeram entrever uma escola que compunha corpo, cuidado e luta. Coreografava-se uma nova ecologia do cuidado, do corpo, da luta. Gestava-se um território existencial diverso, uma cabaça da existência variada, que se parecia com os contornos de um terreiro aquilombado: corpo, cuidado e luta – comida, dança e festa. Escola: quilombo-afrofuturista.

Ao experimentar com quando quebra queima, borra-se as separações espaço-temporais entre o espetáculo e as ocupações. Deve-se experimentá-las em co-composição, continuidade, experiência em ato. Prolongamento. Aliança. É de alguma forma um mesmo terreiro existencial, com suas vibrações singulares a cada caso, a cada incorporação, a cada roda. O que mais pode ser a Escola além disso que foi, uma pedagogia da tristeza? É possível destituí-la com táticas de sabotagem dançante? É possível recriar, reinventar, refazenda e refazendo tudo? É possível coreografar outros passos, outras gingas, e forjar novos usos?

É Negri quem fala da luta contra a desfiguração da vida e do amor. Contra esses mecanismos de degradação e repressão. E como ele coloca, há um sentido de positividade na construção de projetos plurais: há comunidade, liberdade. Há vontade de luta, doçura da sabotagem e todo um tempo do amor que é arrancado ao sistema. Esse tempo existe, reforça: um tempo arrancado do inimigo.

Nada sei de grandes projetos de reconstrução. Só sei que milhões e milhões de seres humanos como eu constroem a cada instante uma alternativa de desejo, sei que este enorme acúmulo de desejo atrapalha o funcionamento do sistema, e sei que este tempo outro que quero viver constrói um signo de contradição ao inimigo e uma esperança para mim.

 quando quebra queima diz algo desse tempo em que se sentiu liberto. Tempo em que se sabotou gingando as engrenagens estatais, militares, midiáticas. Tempo que se desdobrou numa recusa que era riqueza transbordando os muros. Esse tempo liberto [esse imediato] pode ser uma dança – uma dança que também é doce, como aqueles que honramos aos erês. Essa escola que vem aquilombada, com corpos-estranhos, e uma pedagogia da alegria, do cuidado e da luta. Alegria, essa energia incontrolável que ameaça a ordem brincando: a revolta dos erês.

Então dance. Dance e sabote o Estado.

Eu ocupo o mundo com o meu corpo.

quando quebra queima é sobre aqueles momentos em que o Estado e a pele branca deixaram de ser o centro de gravidade do mundo; esse é o grande acontecimento. E ainda que os delírios dessa modernidade sejam cruéis, essa revelação nos é dada com alegria. Ainda que os arrastões neoliberais nos endividem e tratem os corpos como dos escravos do passado. Há um devir-negro do mundo. E apesar de toda tormenta instaurada, há sobrevivência e força nessa dança-reviravolta. Toda energia aprisionada no corpo está subindo a terra. Circulando. Há ruído no ritual de insurreição e o lugar da dor é agora um lugar da criação.

Ultima nota: dia 24 de Junho de 2018 foi o último dia da temporada de Quando Quebra Queima no Teatro Oficina. Casa cheia. Corpos eufóricos. Corpos concentrados. Corpos emocionados. Em um mês de lutas e de fogo. E mais uma vez em Junho – que é muita coisa – o calor desses corpos alumiou a rua e a ocupou. Eles trouxeram o prazer da sabotagem. Como é gostoso sabotar o mundo enquanto se dança, sabotar o mundo dançando. Nós temos força pra revirá-lo outra vez.

Corpo aberto, corpo gira.

C o r p o R e v o l t a

 

 

QUANDO QUEBRA QUEIMA é uma peça construída por estudantes que viveram o processo de ocupações e manifestações do movimento secundarista em 2015 e 2016. Frutos da primavera secundarista, 14 corpos insurgentes deslocam para a cena a experiência dentro das escolas ocupadas, criando uma narrativa coletiva e comum a partir da perspectiva de quem viveu intensamente o cotidiano dentro do movimento.

Ocupando o tempo presente, a ColetivA provoca de maneira pulsante o universo que compõe esse movimento que transformou o corpo e vida de todos que participaram.

CRIAÇÃO

Abraão Santos / Alicia Esteves / Alvim Silva / Ariane Fachinetto / Beatriz Camelo / Gabriela Fernandes / Ícaro Pio / Leticia Karen / Lilith Cristina /Marcela Jesus / Matheus Maciel / Mel Oliveira / André Dias de Oliveira / Heitor de Andrade / Martha Kiss Perrone / Mayara Baptista

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