Fogo e Feitiço
Por Clarissa Reche
No começo do ano eu virei uma bruxa. A cerimônia ritual foi bem complexa e envolveu uma sorte de objetos como corante, pena, rato de plástico, glitter e até cera derretida de vela, tudo devidamente misturado em um caldeirãozinho de plástico.
Quem conduziu o ritual foi a Isa Bella, minha auto-intitulada sobrinha de 5 anos. Ela ficou realmente desconcertada ao saber que eu, afinal, nunca tinha feito um feitiço. Resolveu dar um basta nesta situação, expulsou todos do seu quarto e ficamos lá por uma meia hora. Para fazer o feitiço, a Isa interpretava com cuidado belíssimas aquarelas do seu livro de poções, feito com muito amor pelo seu pai e minha irmã. Se no desenho predominava a cor vermelha, ela colocava corante na mistura. Para as estrelas, glitter. Para o abutre feioso, uma pena saída sei lá da onde. Até que ela, sem nenhuma vergonha, mergulhou um copinho no caldeirão, estendeu a mãozinha até a altura do meus olhos e disse: “bebe”.
Eu bebi, óbvio.
Saindo do quarto mágico, a Isa foi correndo pra sala contar seu mais novo feito para sua avó. A Clari agora era bruxa. A senhora, uns 60 anos, motoqueira, cabelão preto, “A” de anarquia tatuado na mão, gargalhou alto e me disse “bem vinda”, saudação que foi coroada com um olhar daqueles olhares que dizem “eu te reconheço como igual”.
Minha vó também era uma bruxa. Antes achava que era um tipo de anjo ou santa, mas a uns dois meses atrás juntei todos os pontos e agora estou convencida: ela era uma bruxona. Todas as memórias que tenho da vó Maria tem a ver com cura e cuidado. Ela era super católica e dedicou literalmente a vida para por em prática o que, para ela, significava isso. Ela dedicou a vida ao amor ao próximo. O vô David e a vó Maria trabalharam muitos anos junto com o padre Júlio Lancelote na pastoral “do menor” e contavam história que eu, criança (e não “de menor”), ouvia como verdadeiras histórias de horror.
Ao mesmo tempo, numa aparente contradição, a vó Maria era também uma verdadeira ocultista. Lembro dela super magrinha depois de um tempo de dieta macrobiótica, das amigas espíritas que ela tinha, das caminhadas nos parques para colher folhas de eucalipto que ela usava para tratar a asma da minha prima, dos emplastos e álcool com mentruz que confortavam meus joelhos quando me ralava toda brincando, da babosa que plantava e colhia, com delicadeza, e forçava meu avô, com rispidez, a tomar desde que ele foi diagnosticado com câncer, dos cházinhos de dente de leão, que eram bons para quase tudo. E da cura prânica, prática à qual minha vó se dedicou e estudou a fundo, se trancando todos os dias no quarto para cuidar de gente que ela nem conhecia.
E ela não precisava conhecer para cuidar. Era sabido no bairro que a “dona Maria” nunca negava um prato de comida pra ninguém. E que comida! Cozinhava tão bem, e quando dava preparava um bolo delicioso, simples e delicioso, que apelidou de “bolo do véio”, já que o vô adorava. A vó Maria amava tanto. Amava as plantinhas, os bichos, os netos, as pessoas, a vida. Ela vivia o amor.
A vó Maria está agora na fase terminal do alzheimer, uma doença que a acompanha já faz mais de uma década. Quando a doença começou a aparecer e nós ainda não havíamos visto, ela já sabia, e durante muito tempo insistiu para que alguma das netas aprendesse seus conhecimentos, que aprendêssemos a curar e cuidar. Mas não aprendemos, e me arrependo de, adolescente, não ter ouvido a súplica de minha avó. Fico imaginando a dor do mundo que a vó Maria viu e viveu em sua caminhada e às vezes penso que seu corpo e sua mente de bruxa guerreira não suportaram tamanhas injustiças. Ela vivia o amor, mas o mundo é um moinho de ódio.
Outro dia aqui na vizinhança queimaram uma mulher viva. Era uma filósofa estrangeira chamada Judith Buttler que, de passagem, teve que ver o seu rosto colado num corpo de bruxa em chamas. As pessoas que protagonizaram essa cena de violência e ódio diziam que fizeram tal ato em nome da Vida. Que essa mulher, com suas ideias, atentava contra a tal coisa que eles chamam de Vida. Que por isso mesmo ela era uma bruxa. Que por isso deveria ser morta, queimada viva. A maioria ali justificou isso supostamente em nome da mesma fé que a minha vó tinha, só que minha vó dava comida pra vagabundo e curava usando a energia da mão.
Eles queimariam a vó Maria!
No meio do ritual a porta se abriu. Fomos interrompidas pelo pai da Isa que, desavisado, perguntou qual era a finalidade do feitiço. A Isa, sem pensar duas vezes, respondeu que não podia falar e pediu para ele sair. Perguntei, logo que ele saiu, porque ela não quis contar para o pai que estava fazendo um feitiço para que eu virasse bruxa e, novamente sem pensar duas vezes, ela deu uma resposta contundente: o pai não podia saber pois ele era homem, e se soubesse que ela sabia fazer virar bruxa, ele iria querer ser bruxa, e homem não pode ser bruxa.
Eles queimariam a Isa!
Por que eles se incomodam tanto com mulheres falando? Por que eles se incomodam tanto com mulheres pensando, agindo, curando, cuidando, amando, lutando?
Eles me queimariam.
Eu tenho medo! Tenho medo por mim e por todas, um medo constante que existe desde que existo. Um medo presente e corporificado que me faz lembrar sempre que sou mulher. A violência e o ódio nos espreitam. A fogueira está sempre acesa.
Tenho medo mas estou acordada. A força para me manter desperta vem, imagino eu, da própria vida. Mas a vida que a vó Maria me ensinou a amar, a vida que é com, por e pelo próximo, que brilha, arde, ilumina e transforma como o fogo, não aquela Vida que os queimadores de bruxas, que em vão usam o fogo, defendem, uma Vida que castra corpos e mata. A vida pulsa e resiste alegremente, não há espaço para melancolia quando se está bem próxima do chão, o suficiente para ver a beleza da florzinha que brota na rachadura da calçada.
Minha irmã encontrou recentemente o livro que a vó Maria usou para estudar Prânica, cheio de anotações que ela fez. Ainda há tempo. Nós podemos retomar o que é nosso, apesar do trauma.
Jah não pertenço à babilônia. Sou uma artista, sou uma filósofa.
* a imagem que ilustra o texto foi escolhida pela Isa. É de um livrinho dela. Foi também a imagem que ela usou para o feitiço.