Por um materialismo do mistério

Por um materialismo do mistério

por: Alana Moraes

No princípio era o mistério. E depois. E depois. E depois.
Tudo o que importa, se olhar bem, é mistério. As capacidades cerebrais e o movimento das marés: mistério. A disposição para o combate, a indisposição para o combate: mistério. O que pode um corpo e o que ele não aguenta mais: mistério. Ondas do rádio, ervas que curam, solar um bolo. Mistério. O que pode reunir, o que pode afastar, as ideias que vingam, o que cicatriza, um rio que seca. Gente na rua; muita gente na rua; os encontros improváveis. Toda a energia liberada no acontecimento de corpos revoltados e até isso que chamamos de “a revolução”: mistério, mistério, mistério. As viroses, as visões que antecipam futuros, o tremor silencioso e atômico que antecede um beijo apaixonado. Perder o controle: mistério. O delírio de ter o controle: mistério. Ser possuído por um poema, uma entidade, uma mensagem telepática, uma memória olfativa. O contágio. A paralisia. Um cartaz exato. Números imaginários. Amar o som de uma palavra. A improvisação. Mistério. Mistério é como ritmo: move, desloca, arrasta. Não significa, mas atravessa. A febre. A obediência  e a recusa à obediência: quem poderá dizer que sabe bem como acontece? Sermos governados. Mistério. O silêncio diante do extermínio. A paisagem devastadora da guerra. A crença nos muros. A densa e invisível névoa dos desastres nucleares. O rio suspenso que arrasta a areia do Saara à Amazônia. Maiakovski. A fertilidade e o carnaval.  O enfeitiçamento da vida burguesa e a miséria das burocracias. A cumplicidade da lua e das menstruações. As intuições. A fé guevarista, a convicção bolchevique. As cartas de amor de Rosa Luxemburgo. A poesia desesperada dos presos de Guantánamo escrita em copos de plástico: “Haveremos de vencer”!
 A nova hipnose algorítmica.
Mistério, mistério, mistério.
“Aparelhos ideológicos”, vão dizer. “Falsa consciência”. “Isso não existe”. “Disciplina!”
Interrompem a festa. Sempre.  Tanta força para contornar o mistério, domesticá-lo. O mistério, entretanto, escapa.
Sabemos. Eles sabem. A fronteira entre suportar e não mais suportar é feita de matéria misteriosa. O que faz funcionar? O que já não pode mais ser contido? Ser transformado por uma ideia, explodir o próprio corpo, arriscar tudo, gritar uma palavra maldita. “Homens e mulheres fazem história mas não do jeito que querem” – a brecha misteriosa de Marx. Conspirar é compartilhar  as intenções misteriosas do que não pode mais esperar. Aliança entre coisas humanas e as não humanas. Invadir uma propriedade privada. O mistério é o sopro de vida de todo o acontecimento.
Não há oposição entre mistério e materialismo: o que cria mundos ou verdadeiras paixões se não o mistério? O mistério nos exige estar atento aos sinais, todos eles.
Por um materialismo do mistério: misterialismos.
Práticas de atenção do invisível.
Guerrilhas cosmopolíticas.
Metafísicas do sensível.
Não parar de dançar.