Se eu puder dançar
por: JULIA RUIZ DI GIOVANNI
fotos: Alicia Esteves
“Se eu não puder dançar não será minha revolução” ou “não me convide para uma revolução em que eu não possa dançar”. Atribuída à ativista Emma Goldman, a fórmula hoje famosa seria uma reelaboração da convicção expressa pela escritora anarquista em sua auto-biografia: a liberdade que defendia era inseparável do direito à autoexpressão, à beleza e à alegria que ela própria exercia dançando às vistas de seus companheiros. Convertida em um ditado político, a frase ficou conhecida menos pela autenticidade da autoria e mais por sua capacidade de resistir ao tempo ganhar sentidos novos, sendo difundida e reinventada em contextos muito diferentes dos bailes que Goldman dançou. Além do direito às coisas belas e radiantes, o enunciado fala também da relevância tática e estratégica das forças do corpo dançante considerado em um sentido mais amplo. Reaparece, nesse sentido, sempre que alguém em algum lugar sente a urgência de indicar que não se pode abrir mão de algo que apenas os corpos em movimento articulam. Sempre que é preciso declarar que há revoluções que só os fazeres e saberes corporais podem operar, lá onde as criatividades amadurecidas nos trabalhos e amores cotidianos (ou contra eles) encontram a possibilidade transformação social.
Essa potência política dos corpos é um tema fundamental para as confluências entre práticas de ativismo e práticas artísticas, sobre o qual muito se experimentou e escreveu ao longo da segunda metade do século XX. É impossível conceber os protestos e conflitos protagonizados pelo proletariado urbano desde o final do século XIX sem considerar-se a produção de engajamentos corporais múltiplos e complexos, tensionados pelo adensamento da organização científica do trabalho e de políticas higienistas, tornados parte da educação dos corpos da classe trabalhadora para a produção capitalista. A partir dos anos 1960, o lugar do corpo ganha outros múltiplos sentidos, sendo associado a novas poéticas de dissenso e desobediência, que incluem na equação dos confrontos político-culturais dimensões da vida antes tidas como banais ou privadas – rituais domésticos, práticas sexuais, frivolidades festivas, condutas disruptivas. Além disso práticas de pensar e fazer corpo dos movimentos negros e do feminismo, foram e são fundamentais para que saibamos hoje que tudo que se diz sobre e pelos corpos constitui uma zona de enfrentamentos políticos da maior importância. O corpo que dança e luta é campo de batalha. Conflito e diferença ganham o peso próprio dos corpos: na sua materialidade, plasticidade, forças e fragilidades, o que era oculto ou invisível torna-se exposto e torna-se possível historicamente reconhecer a dimensão política de formas que permaneciam relegadas à massa indistinta das experiências cotidianas associadas à repetição mecânica, inconsciente, alienada, que supostamente não reivindicam nenhum sentido.
Então, é muito importante falar do corpo. Mas é mais importante ainda saber que dizer “corpo” não é o bastante. Dizer corpo muitas vezes serve somente para continuar mandando o que há de mais intenso e criativo na experiência política de “volta” ao lugar do que é marginal e indizível, do que mesmo que nos pareça sedutor, percebemos como algo aquém do pensamento. Pelo menos desde a década de 1970 o corpo tem um lugar importante (seja pela contracultura, seja pelo marketing capitalista) nos discursos de busca da felicidade, de prazer, de comunhão, de mais “natureza” ou mais “realidade”. Corpo se torna sinônimo de uma aspiração por mostrar o que se oculta, de eliminar o que separa, de atingir uma verdade livre de representações: um desejo difuso de retornarmos à uma suposta imediaticidade original, à afortunada condição do não-saber. O corpo, assim, condensa também formas de exotismo, presentes seja na sua ostentação como objeto sensível e sensual, seja na multiplicação de práticas e discursos terapêuticos fundados na exploração do corpo através de experimentos e exercícios. Passando pelos vocabulários da medicina, do erotismo e das drogas, o corpo, alegoria de desmistificação, se torna ele mesmo mito de uma busca da verdade.
Talvez a questão seja menos dizer corpo e mais fazer corpo. Como propõe a antropóloga Annemarie Mol[i], sabemos que “temos” corpo, que “somos” corpo, mas o que acontece se começarmos a perceber e considerar politicamente importante o fato de que um corpo é algo que fazemos e refazemos todos os dias?
E se em vez de supor o corpo como algo inteiro e acabado que é preciso “resgatar ou “reencontrar”, pudéssemos entender o corpo como algo que precisa ser feito ? Que sua inteireza não está dada, mas depende de pequenas e grandes ações íntimas e coletivas? Quem sabe isso nos fizesse reconhecer o tamanho da luta que esse fazer implica. Luta para manter-se inteira, que a juventude negra que acorda todos os dias na linha de tiro da política de genocídio que governa as cidades brasileiras, ou que as mulheres que mantém casas e comunidades funcionando noite e dia, que os sem acesso à serviços de saúde, que aqueles para quem a crise e a precariedade nunca foram condições passageiras, conhecem melhor que qualquer macroanálise. Isso quem sabe nos fizesse reconhecer mais seriamente, que no coração disso que chamamos política estão, por exemplo, todas a operações e tarefas ordinárias, anti-heroicas e não remuneradas que as mulheres fazem e refazem todos os dias. Todos as práticas de cultivo dos prazeres criativos e festivos, muito associados à categoria política da “juventude”: outro termo exotizante. Todos os sistemas difusos de cuidado, de vizinhanças, de escuta, de amparo, todos os usos, todos os exercícios e rituais religiosos e profanos de fortalecimento e preparo para os combates do dia a dia.
Poder dançar, desse ponto de vista, não seria entendido como um desejo individualizado de “extravasar”, nem dependeria das qualidades de certos corpos que supomos serem naturalmente mais propícios à insubmissão, à “expressão” ou mesmo à criatividade: em geral a corpos jovens ou mesmo femininos (no Brasil, diferente de outros países da América Latina, dançar é uma atividade considerada feminina ou feminizante, com toda carga de atribuições sociais, econômicas e de violências que isso implica). O que acontece se entendermos a dança não como uma atividade especializada, mas como um modo intensificado de estar presente, de lutar para fazer-se inteira, algo que pode ser e já é praticado por uma maioria? Poder dançar seria sim poder fazer corpo abertamente, conscientemente, políticamente: exercitar modos disseminados e socialmente compartilhados de mover-se e fazer mover, modos de conhecer o mundo, no ato mesmo de transformá-lo, saberes de que ninguém detém o monopólio ou o segredo.