Por Emiliano Teran Mantovani
(tradução Giovanna Marra)
Não é possível entender a crise atual na Venezuela sem analisar em conjunto os fatores que se desenvolvem “desde dentro”, e que não são explicados em seu conjunto pelos principais meios de comunicação. Apontamos sete chaves da crise atual nas quais se ressalta que não se pode compreender o que ocorre na Venezuela sem levar em conta a intervenção estrangeira e que o conceito de “ditadura” nem explica o caso venezuelano, nem é uma especificidade regional desse país. Por sua vez, apontamos que se está transbordando o contrato social, as instituições e os marcos da economia formal e que se está canalizando o devir e as definições políticas da atual situação pela via da força e através de um bom número de mecanismos informais, excepcionais e subterrâneos. Propomos que o horizonte compartilhado dos blocos partidários de poder é neoliberal, que estamos frente uma crise histórica do capitalismo rentista venezuelano e que comunidades, organizações populares e movimentos sociais se enfrentam a um progressivo esvaziamento do tecido social.
O tratamento que se dá a Venezuela nos grandes meios de comunicação internacionais é sem dúvida especial em todo o mundo. Não tenha dúvidas que hajam demasiadas tergiversações, demasiado maniqueísmo, demasiados slogans, demasiadas manipulações e omissões.
Mais além das versões cretinizantes da linguagem midiática que interpreta tudo o que ocorre no país na chave de uma ‘crise humanitária’, ‘ditadura’ ou ‘presos políticos’, ou bem de uma narrativa heróica da Venezuela do ‘socialismo’ e a ‘revolução’ que interpreta tudo o que ocorre no país na chave de uma ‘guerra econômica’ ou ‘ataque imperial’, há muitos temas, sujeitos e processos que são invisibilizados, que ocorrem mar adentro e que essencialmente constituem o cenário político nacional. Não é possível entender a crise atual na Venezuela sem analisar em conjunto os fatores que se desenvolvem ‘desde dentro’.
O critério de ação e interpretação baseado na lógica ‘amigo-inimigo’ responde mais a uma disputa entre elites dos partidos políticos e grupos econômicos que aos interesses fundamentais das classes trabalhadoras e da defesa dos bens-comuns. É necessário apostar por visões integrais do processo de crise e conflito nacional, que contribuam a traçar as coordenadas para transcender ou enfrentar a conjuntura atual.
Apresentamos 7 chaves para sua compreensão, analisando não só a disputa governo-oposição, mas também processos que estão se desenvolvendo nas instituições políticas, nos tecidos sociais, nas tramas econômicas, ao passo que se ressaltam as complexidades sobre o neoliberalismo e os regimes de governo e governança no país.
Não é possível compreender o que ocorre na Venezuela sem tomar em conta a intervenção estrangeira
O rico e vasto conjunto dos chamados ‘recursos naturais’ do país; sua posição geo-estratégica; seu desafío inicial às políticas do Consenso de Washington; sua influência regional para a integração; assim como suas alianças com China, Rússia ou Irã; lhe outorgam um notável significado geopolítico à Venezuela. Entretanto, existem setores intelectuais e midiáticos que continuamente buscam obviar as muito fluidas dinâmicas internacionais que impactam e determinam o devir político no país, onde se ressalta o persistente acionar intervencionista do Governo e os diferentes poderes fáticos dos Estados Unidos.
Nesse sentido, estes setores se encarregam de ridicularizar a crítica ao imperialismo, e apresentam o Governo Nacional como único ator de poder em jogo na Venezuela, e portanto como o único objeto de interpelação política.
No entanto, desde a instauração da Revolução Bolivariana se desenvolveu um intenso intervencionismo estadunidense na Venezuela, o qual se agravou e tornou-se mais agressivo a partir da morte do presidente Chávez (2013) e do contexto de esgotamento do ciclo progressista e restauração conservadora na América Latina. Vale recordar a Ordem Executiva assinada por Barack Obama em março de 2015 no qual se declarava a Venezuela como uma ameaça inusual e extraordinária para a segurança nacional dos EUA – ‘an usual and extraordinary threat to the national security and foreign policy of the United States’ [1]. Já sabemos o que ocorreu aos países que são catalogados dessa maneira pela potência do norte.
Atualmente, ademais das ameaçadoras declarações do Chefe do Comando Sul, o Almirante Kurt W. Tidd (6 de abril de 2017), colocando que a ‘crise humanitária’ na Venezuela poderia obrigar a levar adiante uma resposta regional – ‘The growing humanitarian crisis in Venezuela could eventually compel a regional response’ [2] – e da evidência da agressividade da política exterior de Donald Trump com o recente bombardeio à Síria, o Secretário Geral da Organização de Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, encabeça junto a vários países da região a tentativa de aplicação da Carta Democrática para abrir um processo de ‘restituição da democracia’ no país.
Os ideólogos e operadores midiáticos da restauração conservadora na região se mostram muito preocupados pela situação de Direitos Humanos (DDHH) na Venezuela, mas não conseguem explicar em sua análise porque estranhamente não se faz nenhum esforço supranacional do mesmo tipo frente à espantosa crise de DDHH em países como México e Colômbia. Nesse sentido, parece que a indignação moral é relativa e preferem calar-se.
Seja pois, por razões de intencionalidade política ou ingenuidade analítica, estes setores despolitiza o rol de organismos supranacionais desconhecendo as relações geopolíticas de poder que os constituem, que fazem parte de sua própria natureza. Uma coisa é uma leitura paranóica de todas as operações impulsionadas por estes organismos globais e outra muito diferente é uma interpretação puramente procedimental de seu acionar, obviando os mecanismos de dominação internacional e controle de mercados e de recursos naturais que se canalizaram através destas instituições de governança global e regional.
Mas há algo importante que adicionar. Se falamos de intervenção, não podemos somente falar dos EUA. Na Venezuela existem crescentes formas de intervencionismo chinês na política e as medidas econômicas que se foram tomando, o que aponta a perdas de soberania, incremento da dependência com a potência asiática e processos de flexibilização econômica.
Uma parte da esquerda preferiu calar estas dinâmicas, dado que parece que a única intervenção que merece ser assinalada é a estadunidense. Mas ambos propósitos de ingerência estrangeira estão se desenvolvendo para favorecer a acumulação capitalista transnacional, a apropriação de ‘recursos naturais’ e que nada tem a ver com as as reivindicações populares.
O conceito de ‘ditadura’ não explica o caso venezuelano
Quase desde o início da Revolução Bolivariana a Venezuela foi intitulada como ‘ditadura’. Este conceito segue sendo objeto de amplos debates na teoria política devido a que tenha sido desafiado pelas transformações e complexificação dos regimes e exercícios de poder contemporâneos, sobretudo na atual época globalizada, o que coloca sérios vazios e imprecisões em suas definições.
A ‘ditadura’ soa estar associada a regimes políticos ou tipos de governos nos quais todo o poder está concentrado, sem limitações, em uma só pessoa ou um grupo delas; há uma ausência de divisão de poderes; ausência de liberdades individuais, de liberdade de partidos, liberdade de expressão; e inclusive em ocasiões o conceito foi vagamente definido como ‘o oposto a democracia’.
O termo ‘ditadura’ na Venezuela foi utilizado e massificado no jargão midiático de maneira bastante superficial, visceral e de uma forma moralizante, praticamente para colocá-lo como uma espécie de especificidade venezuelana, distinguindo-se assim dos outros países da região, onde em teoria haveria regimes ‘democráticos’.
A questão é que na Venezuela na atualidade dificilmente se pode dizer que todo o poder está concentrado sem limitações em uma só pessoa ou um grupo delas, devido a que no país estamos frente a um mapa de atores, que se é hierarquizado, é também fragmentado e volátil – sobretudo depois da morte do presidente Chávez -, pela existência de diversos blocos de poder que podem aliar-se ou enfrentar-se entre eles e que transborda a dicotomia governo-oposição.
Ainda que exista um governo com um componente militar importante, com crescentes expressões de autoritarismo e com certa capacidade de centralização, o cenário é altamente movediço. Não há dominação total de cima à baixo, e há certa paridade entre os grupos de poder em disputa. Em troca o conflito poderia transbordar-se, tornando ainda mais caótica a situação.
O feito de que a oposição venezuelana controle a Assembléia Nacional, a qual ganhou contundentemente pela via eleitoral, assinala ademais que antes que uma pura ausência de divisão de poderes, há em troca uma disputa entre eles, até agora favorável à combinação Executivo-Judicial.
Antes que falar de um regime político homogêneo, estamos frente uma ampla e conflitiva rede de forças. A metástase da corrupção faz com que o exercício do poder se descentralize ainda mais, ou se dificulte sua centralização por parte do Poder Constituído.
O que sim tem a ver com o velho conceito romano de ditadura, é que neste contexto o Governo Nacional está governando por meio de decretos e medidas especiais no marco de um declarado ‘estado de exceção’ que se oficializa desde inícios de 2016. Em nome da luta contra a guerra econômica, o avanço da delinquência e do paramilitarismo e os avanços subversivos da oposição, numerosas mediações institucionais e procedimentos democráticos estão sendo omitidos. Destacam-se por sua gravidade políticas de segurança como a Operação de Liberação do Povo (OLP), que representam intervenções de choque diretas dos corpos de segurança do Estado em diferentes territórios do país (rurais, urbanos, bairros periféricos), para “combater a quadrilha”, os quais soam ter polêmicos saldos em mortes; a paralisação do referéndum revogatório; a suspensão das eleições ao governo em 2016 sem assim deixar claro quando se realizarão; crescentes repressões e excessos policiais frente ao descontamento social, produto da situação no país; e um incremento de processos de militarização, ressaltando as zona fronteiriças e as declaradas de ‘recursos naturais estratégicos’.
Este é o mapa político que, junto às diversas formas de intervenção estrangeira, configuram o cenário de guerra de baixa intensidade que atravessa praticamente todos os âmbitos da vida cotidiana dos venezuelanos. Este é o marco em que se desenvolvem as liberdade individuais, a oposição e pluralidade partidária, a convocatória e realização de marchas, expressões de dissidência e críticas nos meios de comunicação, entre outras formas da chamada democracia na Venezuela.
III. Na Venezuela se está transbordando o contrato social, as instituições e os marcos da economia formal
Se há algo que poderia definir-se como uma especificidade do caso venezuelano é que seu cenário sociopolítico atual está desgarrado, profundamente corrompido e altamente caotizado. Temos sustentado que no país estamos frente uma das crises institucionais mais severas de toda América Latina [3], fazendo referência com isso ao conjunto das instituições jurídicas, sociais, econômicas, políticas, entre outras, que conformam a República venezuelana.
A crise histórica do modelo de acumulação rentista petroleiro, a metástase da corrupção no país, severas vulnerabilidades ao tecido social desde o ‘período neoliberal’ e em especial desde 2013, e a intensidade dos ataques e disputas políticas, transbordou em seu conjunto os marcos das instituições formais de todos os âmbitos da sociedade, canalizando grande parte das dinâmicas sociais pela via de mecanismos informais, subterrâneos e ilegais.
No âmbito econômico, a corrupção se transformou em um mecanismo transversal e motor de distribuição da renda petroleira, desviando enormes somas de divisas à discrição de poucos, e minando as bases da economia formal rentista. Isto ocorre de maneira determinante com PDVSA [4], a principal indústria do país, assim como com fundo chave como o Fundo Chino-Venezuelano ou com numerosas empresas nacionalizadas.
O colapso da economia formal fez da informalidade praticamente um dos ‘motores’ de toda a economia nacional. As fontes de oportunidade sociais, seja de ascensão social ou de possibilidade de maiores ganancias, se encontram com frequência no chamado ‘bachaqueo‘ de alimentos (o comércio ilegal, a altíssimo preços, dirigidos ao mercado negro) [5] ou outras formas de comércio nos diversos mercados paralelos seja de divisas, medicinas, gasolina, etc.
No âmbito político-jurídico, o estado de direito carece de respeito e reconhecimento por parte dos principais atores políticos, os quais não só se desconhecem mutuamente se não que recorrem a movidas políticas dispostos a tudo para vencer um ao outro. O governo nacional enfrenta ao que considera as ‘forças inimigas’ com medidas de exceção e comoção, enquanto grupos da oposição mais reacionários desenrolam operações violentas de vandalismo, confrontação e ataque a infraestruturas. Neste cenário diminui sobremaneira o estado de direito, tornando muito vulnerável à população venezuelana.
Cada vez reina uma maior impunidade, a qual se expandiu à todos os setores da população. Isto não só faz que se enquiste ainda mais a corrupção, que surge indetível, senão que implica que a população não espere nada do sistema de justiça, e cada vez mais a exerça com suas próprias mãos.
O colapso do contrato social gera tendências de ‘salve-se quem puder’ na população. A fragmentação do poder também contribuiu a que se gerem, cresçam e se fortaleçam diversos poderes territoriais, como são os chamados ‘sindicatos mineiros’ que controlam com armas minas de ouro no estado Bolívar, ou grupos criminosos que dominam setores de Caracas como El Cementerio ou La Cota 905 [6].
O marco apresentado implica nada mais e nada menos que o devir e as definições políticas da atual situação no país estão se desenvolvendo em grande medida pela via da força.
A crise de largo prazo do capitalismo rentístico venezuelano
O afundamento dos preços internacionais do crude foi determinante no desenvolvimento da crise venezuelana, mas não é o único fator que explica este processo. Desde a década dos anos 80 existem crescentes sintomas de esgotamento do modelo de acumulação baseado no extrativismo petroleiro e na distribuição de renda que gera. A atual fase de caotização da economia nacional (2013-hoje) é também produto do devir econômico dos últimos 30 anos no país. Por quê?
Vários razões explicam. Em torno de 60% dos crudes venezuelanos são pesados e extra-pesados. Estes crudes são economicamente mais custosos e requerem maior uso de energia e o emprego de processamentos adicionais para sua comercialização. A rentabilidade do negócio que alimenta o país vai descendendo com respeito a tempos anteriores, quando prevaleciam crudes convencionais. Isto ocorre ao mesmo tempo que o modelo exige cada vez mais ingressos rentísticos e cada vez mais inversão social não só para paliar as crescentes necessidades de uma população que segue aumentando.
A hiper-concentração populacional nas cidade (mais de 90%) promove um uso de renda orientado fundamentalmente no consumo (de bens importados) e muito pouco em formas produtivas. As épocas de bonanza promovem o fortalecimento do setor extrativo (primário) – os efeitos da chamada ‘Doença Holandesa’ – o que vulnerabiliza notavelmente aos já débeis setores produtivos. Logo finalizada a bonança (como ocorreu nos fins dos anos 70 e agora desde 2014), a economia fica mais dependente e ainda mais débil para enfrentar uma nova crise.
A corrupção sócio-política do sistema também possibilita fugas e descentralizações fraudulentas da renda, o que impede o desenvolvimento de política coerentes de distribuição para paliar a crise.
A crescente volatilidade dos preços internacionais do crude, assim como mudanças na balança de poder global em torno do petróleo (como a progressiva perda de influência da OPEP) tem também significativos impactos na economia nacional. Enquanto se desenvolvem todos esses vaivéns econômicos no país, os recursos ecológicos seguem sendo minados e esgotados, o que ameaça os meios de vida de milhões de venezuelanos para o presente e o futuro.
A atual solução que impulsiona o Governo nacional foi incrementar notavelmente o endividamento externo, distribuir a renda de maneira mais regressiva para a população, expandir o extrativismo e favorecer ao capital transnacional.
Em resumo, qualquer das elites que governe nos próximos anos, terá que enfrentar, sim ou sim, os limites históricos que foi alcançado com o velho modelo rentista petroleiro. Não bastará somente esperar um golpe de sorte para que os preços do petróleo subam. Virão mudanças transcendentais e há que se estar preparados para enfrentá-las.
Socialismo? Na Venezuela está sendo levado a cabo um processo de ajuste e flexibilização econômica progressivo.
No país está se desenvolvendo um processo de ajuste progressivo e setorizado da economia, flexibilizando prévias regulações e restrições ao capital, e desmantelando paulatinamente os avanços sociais alcançados em tempos anteriores à Revolução Bolivariana. Essas mudanças aparecem mascaradas em nome do Socialismo e da Revolução, ainda que representem políticas cada vez mais rechaçadas pela população.
Destacam-se políticas como a criação das Zonas Econômicas Especiais, as quais representam liberalizações integrais de partes do território nacional, uma figura que entrega a soberania aos capitais estrangeiros que passariam a administrar praticamente sem limitações ditas regiões. Se trata de uma das medidas mais neoliberais desde a Agenda Venezuela implementada pelo governo de Rafael Caldera nos anos 90, sob as recomendações do Fundo Monetário Internacional.
Também ressaltam a paulatina flexibilização dos convênios com as corporações estrangeiras na Faixa Petrolífera do Orinoco; liberalização de preços de alguns produtos básicos; crescente emissão de bônus soberanos; desvalorização da moeda, criando-se um tipo de câmbio flutuante (Simadi); aceitação de alguns trâmites comerciais diretamente em dólares, por exemplo, no setor turismo; ou o fiel cumprimento dos pagamentos de dívida externa e os serviços da mesma, o que implica um recorte nas importações e consequentes problemas de escassez de bens de consumo básico.
Está se impulsionando o relançamento de um extrativismo flexibilizado, apontando fundamentalmente frente às novas fronteiras da extração, onde destaca-se o mega-projeto do Arco Mineiro do Orinoco, o qual suscita instalar como nunca antes a mega-mineradora em um território de 111.8000 kms de extensão, ameaçando fontes de vida chave para os venezuelanos, em especial para os povos indígenas. Estes projetos supõe ademais o encadeamento a largo prazo aos esquemas de dependência que produz o extrativismo [7].
Cabe destacar que estas reformas se combinam com a manutenção de algumas políticas de assistência social, contínuos aumento dos salários nominais, algumas concessões a demandas das organizações populares e o uso de uma narrativa revolucionária e anti imperialista. Isto evidentemente tem como um de seus principais objetivos a manutenção dos apoio eleitorais que ficam.
Estamos em presença do que chamamos de um ‘neoliberalismo mutante’, na medida em que se combinam formas de mercantilização, financeirização, e desregulação com mecanismos de intervenção estatal e assistência social.
Parte da esquerda esteve muito focada em evitar a chegada de governos conservadores ao poder para assim evitar a ‘volta do neoliberalismo’. Mas esquecem de mencionar como governos progressistas também avançaram em várias medidas seletivas, mutantes e híbridas do perfil neoliberal, que finalmente afetam o povo e a natureza [8].
A alternativa? O projeto dos partidos da ‘Mesa da Unidade Democrática’ (MUD) é neoliberal
A direitista ‘Mesa da Unidade Democrática’ (MUD) é o bloco predominante da oposição partidária ao Governo nacional, ainda que uma oposição de esquerda venha crescendo lentamente e seja factível que o siga fazendo. Esta esquerda crítica, ao menos a mais definida, não se identifica com a MUD e não se articula politicamente com esta.
A MUD não é um bloco homogêneo, e em troca existem setores que vão, desde influentes grupos radicais de extrema direita – que poderíamos chamar ‘uribistas’ – até chegar a alguns setores de conservadorismo light, e de liberalismo de elite com certa tendência distribucionista. Estes diversos grupos têm uma relação conflitiva entre eles e com eventuais confrontos e insolências mútuas.
Apesar de suas diferenças, aos diferentes grupos da MUD unem-se ao menos três fatores fundamentais: sua matriz ideológica, as bases de seu programa econômico e sua agenda reacionária frente ao Governo nacional e frente a possibilidade de uma profunda transformação de corte popular emancipatório. Nos referiremos às duas primeiras.
Sua matriz ideológica está profundamente determinada pela teoria neoclássica e pelo liberalismo conservador, enaltecendo obsessivamente a propriedade privada, o fim da ‘ideologização’ por parte do Estado e o auge das liberdades empresariais individuais.
Estes pilares ideológicos são mais claros na programática deste bloco que em seus próprios discursos midiáticos, onde a retórica é simplista, superficial e cheia de lemas. A síntese mais acabada de seu modelo econômico se encontra nos ‘Alinhamento para o Programa de Governo de Unidade Nacional (2013-2019)’ [9]. Se trata de uma versão neoliberal mais ortodoxa do extrativismo petroleiro, em relação ao projeto do atual Governo venezuelano.
Destaca-se o fato de que, a pesar de hastear a bandeira da ‘mudança’ e da ‘Venezuela produtiva’, sua proposta coloca levar a extração de petróleo na Venezuela até 6 milhões de barris diários, colocando ênfase no incremento as cotas da Faixa Petrolífera do Orinoco. Ainda que se acusem, briguem e assinalem publicamente, as propostas petroleiras de Henrique Capriles Radonski (Petróleo para seu Progresso) [10] e Leopoldo López (Petróleo na Melhor Venezuela [11]) são gêmeas, e consentem com o ‘Plano da Pátria’ 2013-2019 impulsionado pelo Governo nacional. A mudança anunciada não é mais que outro encadeamento com o extrativismo, mais rentismo e desenvolvimentismo, e as consequências econômicas e impactos sócio-ambientais e culturais que carrega este modelo.
VII. A fragmentação do ‘povo’ e a progressiva minada do tecido social
Em todos esses processos de guerra de baixa intensidade e caos sistêmico, o principal afetado é o povo trabalhador. A potente coesão sócio-política que se configurara nos primeiros anos da Revolução Bolivariana sofreu não só um desgaste mas uma progressiva desarticulação. Mas estas afetações chegaram inclusive à própria medula dos tecidos comunitários do país.
A precariedade para cobrir as necessidades básicas da vida cotidiana; os incentivos à resolução individual e competitiva dos problemas socioeconômicos da população; a metástase da corrupção; a canalização dos conflitos e disputas sociais por via da força a perda de referenciais ético-políticos e o desgaste da polarização devido ao descrédito dos partidos; a agressão direta a experiências comunitárias fortes ou importante e a líderes comunitários por parte de diversos atores políticos e territoriais; fazem parte deste processo de vulnerabilização dos tecidos sociais que aponta a minar os verdadeiros pilares de um potencial processo de transformação popular-emancipatório ou das capacidades de resistência da população frente um maior avanço das forças regressivas no país.
Enquanto isso, diversas organizações de base popular e movimentos sociais ao longo do país insistem em construir uma alternativa desde seus territórios. Os tempos dirão qual será sua capacidade de resistência, adaptação e sobretudo sua habilidade coletiva para articular-se entre eles e disputas com maior fortaleza o rumo do projeto político nacional.
Se existe uma solidariedade irrenunciável que deveria impulsionar-se desde as esquerdas na América Latina e no mundo, deve ser com esse povo lutador, esse que historicamente carregou sobre seus ombros a exploração e os custos da crise. Esse que frequentemente transbordou e se reapropriou das ruas buscando que suas demandas sejam escutadas e atendidas. Esse que na atualidade se enfrenta aos complexos dilemas que supõe os atuais tempos de refluxo e regressões. Este que parece ser o verdadeiro ponto de honra das esquerdas. O custo de dar as costas a estas contra-hegemonias populares em nome de uma estratégia de conservação do poder poderia ser muito alto.
Caracas, abril de 2017.
[3] http://www.rebelion.org/noticia.php?id=207450
[5] http://www.eluniversal.com/noticias/economia/leon-bachaquero-invierte-400-revender-gana-mil_21462
[6] http://efectococuyo.com/principales/van-al-menos-24-fallecidos-en-enfrentamientos-entre-cicpc-y-bandas-delincuenciales; http://www.radiomundial.com.ve/article/enfrentamiento-en-cota-905-deja-14-muertos-y-134-detenidos-audio
[7] http://www.alainet.org/es/articulo/175893
[8] http://www.alainet.org/es/articulo/172285
[9] http://static.telesurtv.net/filesOnRFS/opinion/2015/12/09/mud_government_plan.pdf