Texto de Kate Shea Baird, Enric Bárcena, Xavi Ferrer e Laura Roth (membros de Barcelona En Comú)
Os Movimentos municipalistas do Estado espanhol não podemos ignorar a crise do neoliberalismo global. É nossa vez de dar a cara para defender nossa aposta pela mudança “bottom up” (de baixo pra cima), feminista e radicalmente democrática. O “assalto municipalista” que temos vivenciado nos últimos dois anos em muitas cidades do Estado Espanhol dá vertigem. Assembleias de bairro. Programas eleitorais. Códigos éticos. Negociações confluentes. Crowdfunding. Campanhas eleitorais. Pactos de governos. Despachos. Rua. Gestão. Sucessos. Contradições. Erros. Aprendizados. Seria fácil nos perder nas vitórias e derrotas do dia a dia se não fosse pelo turbulento contexto global no qual nos encontramos. A Revolução dos Paraguas. Oxi. Refugiadas. Nuit Debout. Brexit. Dilma Rousseff. O acordo de Paz na Colômbia. Trump. Referendo na Itália. Le Pen. Por muito que as tarefas cotidianas dos nossos bairros nos demandem com urgência, é responsabilidade do movimento municipalista refletir sobre nosso papel para além das nossas cidades e das fronteiras do Estado.
Faz pouco mais de um ano desde Barcelona Em Comú começamos a dar voltas com essa questão. Primeiro de forma reativa, provocada pelo enorme interesse que gerou nossa vitória eleitoral nos âmbitos mais diversos da esquerda europeia e internacional. Desde os centros autogestionados de Nápoles e Roma até os think tanks de Londres e Berlim, percebemos rapidamente que a nossa experiência tinha se convertido num referente de transformação política. A figura de Ada Colau com a sua trajetória de ativismo, o processo profundamente coletivo que representa Barcelona En Comú e a projeção internacional que tem Barcelona como cidade tem ajudado para captar a atenção de muitas pessoas que buscam novas respostas à crise econômica e política. Somado a isso, muitas das lutas nas quais o Ayuntamiento (Prefeitura) está colaborando com a cidadania organizada de Barcelona estão acontecendo também em outras cidades, como por exemplo frear a massificação turística, garantir o direito à moradia e remunicipalizar os serviços básicos. Pensando no papel que atualmente joga o movimento municipalista surgido em 2014, por isso, para muitos o movimento municipalista é a possibilidade de uma alternativa real.
Embora nos tenham interpelado de muitos lugares, o que tem nos dado mais energia para continuar construindo são as trocas que tivemos com outros movimentos municipalistas, estejam ou não no governo. Além de compartilhar nossos objetivos, esses movimentos compartilham nossas formas de fazer. Colocam os objetivos na frente das siglas partidárias, se baseiam no fazer e não em debates teóricos estéreis, se comunicam com uma linguagem mais próxima e emotiva; são feministas e procuram feminizar a política, colocando as práticas cotidianas e os cuidados no centro; e constroem desde baixo, a partir da inteligência coletiva. A final, nos movimentos municipalistas temos achado pessoas radicais mas ao mesmo tempo pragmáticas, com as quais nos sentimos capazes de imaginar e construir o futuro.
Nesse sentido, a partir de Barcelona, estamos fazendo um mapeamento contínuo de experiências municipalistas afins ao redor do mundo e tratando de pensar conjuntamente com elas como nos articulamos e nos apoiamos mutuamente. Graças a esse processo temos desenvolvido uma hipótese que busca inserir a dimensão internacional no centro dos debates municipais e o municipalismo no centro dos debates globais. E temos chegado à conclusão que a via a seguir é a de trabalhar o municipalismo em rede a nível global.
Por que uma rede municipalista global?
É importante dizer que falamos de “rede” como uma forma de trabalhar e não como uma estrutura formal; e explicitar que não nos referimos a uma rede institucional, mas a um espaço de afinidade política, formada por movimentos e organizações que possam estar no governo, na oposição ou também fora das instituições. É evidente que nossas prefeituras devem continuar trabalhando com seus homólogos de outras cidades na base de objetivos comuns. O acordo de colaboração entre Barcelona e Paris em torno ao turismo, a gestão pública da água ou da memória histórica é um bom exemplo, assim como a rede de cidades refúgio ou a dos governos locais que estejam contra o TTIP. Mas a verdade é que atualmente existem poucas prefeituras fora do Estado espanhol que estejam governadas por forças afins à nossa metodologia e nossos objetivos. Esse é o principal motivo pelo qual nos urge um espaço político. Em aliança com outras organizações poderemos fazer frente com mais força e a partir de mais espaços à falta de democracia imposta pelos estados e os mercados.
Se existia alguma dúvida a respeito, o primeiro ano e meio de governo das chamadas “cidades da mudança” tem mostrado que a capacidade de intervenção local está fortemente marcada por poderes e tendências globais. Vemos como os aluguéis de nossa cidade sobem de forma exorbitante como consequência direta de empresas como Airbnb que promovem especulação com a moradia, ignorando às normativas locais. Nos preparamos para acolher pessoas refugiadas que nunca chegam. Tentamos promover a economia social e solidária em meio ao capitalismo global na sua fase mais voraz. Dado que enfrentamos à adversários que cruzam fronteiras, nossa resposta também tem que ser transnacional. Temos que ser conscientes de que nossa margem de manobra para frear os abusos de multinacionais gigantes como Airbnb em Barcelona dependerá do sucesso das lutas pelo direito à moradia em San Francisco, Amsterdam, Nova Iorque e Berlim.
Por outro lado, o colapso dos partidos socialdemocratas e a incapacidade dos partidos da esquerda tradicional em se repensar estão deixando um grande vazio no espaço político europeu. Se os movimentos “bottom up“, feministas e radicalmente democráticos não damos um passo para frente para ocupar e articular esse espaço, serão outros que o farão. O tentará fazer a esquerda intelectual machocêntrica de sempre, se apropriando do capital simbólico dos processos de construção desde baixo e sem adotar as práticas que nos definem. A outra opção, que é mais provável e ainda pior, é que quem capitalize essa oportunidade seja a extremadireita autoritária, utilizando suas ideias excludentes e etnicistas de soberania e de povo. No entanto, cabe dizer, com o risco de provocar, que o slogan “Take Back Control” (recuperemos o controle) da campanha pro-Brexit, ou o “Forgotten Man” (o homem esquecido) ao que apela Trump, não são conceitos tão afastados do “Democracia Real” do 15M ou o “99%” de Occupy: todos remetem ao mesmo desejo de ruptura com um establishment político e um sistema económico injusto com a maioria. O fato é que expressar essas demandas no mesmo marco do estado-nação permite que se vinculem elementos racistas ou xenófobos com mais facilidade. No entanto, localizar as soberanias a nível local dificulta essa associação e abre outras possibilidades: as cidades são lugares mestiços, de encontro e de troca cultural; e se os sistemas políticos e econômicos alternativos se constroem desde o local, desde as identidades de vizinhança e não étnicas, no olho no olho, poderemos gerar um espaço desconfiança que não vincule os nossos direitos às nossas origens.
Pistas de ação global para o movimento municipalista
Uma vez que nos propusemos esse desafio, quais são os passos a ser seguidos? Temos identificado quatro linhas de ação.
A primeira se baseia em reforçar a narrativa do municipalismo internacionalista a través da comunicação e da formação. Para internacionalizar nosso movimento temos que nos comunicar com o mundo, explicando nossos valores e práticas, e as políticas que se estão conseguindo levar à frente desde o Ayuntamiento de Barcelona. Isso implica produzir materiais em outras línguas dirigidos ao público internacional, como podem ser os nossos posts dominicais no Facebook – #InternationalSundays -, nossa conta internacional de Twitter – @BComuGLobal – ou nossa guia municipalista. Mas também temos que introduzir a dimensão internacional dentro de nossas organizações abrindo espaços de formação e reflexão para que as Assembleias de bairro, comissões e eixos temáticos participam dos debates globais.
A segunda linha de ação consiste em trabalhar propriamente em fortalecer a rede. Quantas mais sejamos e quantas mais capacidades tenha cada nodo da rede, mais potentes vamos ser. Assim é que devemos continuar identificando experiências afins, nos conhecendo entre a gente e construindo relações de confiança, com o objetivo de crescer e aprofundar nosso trabalho comum. Os que estamos nas plataformas do Estado espanhol, pela experiência deconstrução organizativa e de representação institucional, podemos ser especialmente úteis nesse processo: as lições aprendidas, tanto nos acertos quanto nos erros, podem servir muito para quem agora está se propondo empreender o mesmo caminho.
A terceira linha é o trabalho temático. Sendo movimentos municipalistas, os temas que tem a ver com democracia local e com o entorno urbano são prioritárias para todos. Em âmbitos como o direito à moradia, o uso do espaço público ou a gestão dos bens comuns, temos a oportunidade para aprender umas das outras, refletir juntas, e desenvolver estratégias compartilhadas que nos fortaleçam.
A última, talvez a função mais importante de uma rede política, é a de proporcionar um espaço de apoio político, um “colchão protetor” tanto para celebrar nossos sucessos, como para nos arroupar mutuamente nos momentos difíceis. Neste sentido, desde Barcelona Em Comú já temos nos implicado em dar apoio à luta contra a especulação urbanística em Belgrado, aos prefeitos e prefeitas curdos detidos pela Turquia e na campanha pelo Não no referendum constitucional italiano; nos três casos respondendo a solicitação de nossos referentes municipalistas do lugar.
É verdade que temos muitas frentes abertas e que sem olhar no âmbito internacional implica uma inversão importante de energia e tempo. Mas tem um colete salva-vidas: “o internacional” motiva, gera espaços de solidariedade e abre o horizonte de transformação. Até hoje, a Comissão Internacional de Barcelona En Comú conta com mais de 70 ativistas inscritas, entre eles muitas que tem se somado nos últimos meses. Não cabe nenhuma dúvida de que nossas bases são internacionalistas convencidas; sabem que não podemos fugir sem mais da responsabilidade que assumimos ao nos presentar nas eleições. E somos, para o bem ou para o mal, foco de atenção internacional. Frente a muitos interesses desejantes de que nosso exemplo não frutifique, tem muita mais gente que, não só deseja, mas precisa que constatemos que uma alternativa democrática é possível. Nosso exemplo pode e tem que servir para motivar e animar a mais movimentos municipalistas a dar o salto e construir desde o local uma imparável revolução global.
Publicado originalmente em: http://blogs.publico.es/dominiopublico/18820/el-municipalismo-sera-internacionalista-o-no-sera/