Toni Negri
(Tradução e síntese de Tatiana Roque)
A greve era uma abstenção do trabalho por parte dos operários, uma ruptura da relação de exploração que se qualificava como ataque direto à valorização capitalista. Do ponto de vista do operário, contudo, a greve não era só isso, era também algo material, uma ação que devia “fazer mal ao patrão” e que, ao mesmo tempo, colocava em jogo a vida do trabalhador. Havia algo de carnal, de imediatamente biopolítico na greve, uma ação que transformava a ação econômica em representação política, o ato de abstenção em uma prática de deserção do capital.
Quando a relação de capital é diferente, seja porque o sujeito trabalhador é qualificado de modo diverso ou porque o comando sobre o trabalho é diverso, a greve também deve ser diferente. A greve do operário industrial e do agriculto já eram experiências diferentes. Ainda que cada uma colocasse em jogo a valorização do capital, geravam experiências diversas. A continuidade e a abstenção prolongada do trabalho eram vividas de modo distinto por operários e camponeses, pois para esses últimos, por exemplo, a luta não podia durar tanto (contam que as vacas mugiam desesperadas e a colheita apodrecia). Era preciso, para os agricultores, maximizar o confronto em um tempo breve. Já para os operários, a temporalidade e a figura da luta eram outras, não eram constrangidos pelo limite da continuidade da abstenção do trabalho, a não ser por necessidade de salário e sobrevivência.
A greve só é unitária na imagem que o patrão faz dela, para reimpor a ordem sobre a ruptura: ruptura econômica da relação de valorização e ruptura política da subordinação.
O neoliberalismo se inaugura, nos anos 80, como uma transformação da organização do trabalho, da forma de produção e do controle político sobre a classe operária, como resposta às lutas do operário-massa. As formas de produção se darão, então, pela automação das fábricas e pela informatização social.
Para avançar nesta análise, será necessário perguntar quem é hoje o trabalhador e quem é o patrão. Começando pelo trabalhador, trata-se de um operário que, como está dentro de uma cooperação cada vez mais intensa, qualifica sua força de trabalho como potência motora do sistema produtivo. É na cooperação que o trabalho se torna cada vez mais abstrato, logo mais capaz de organizar a produção, e ao mesmo tempo mais sujeito a mecanismos de extração de valor: capaz de criar cooperação produtiva e constrito a vê-la extraída (pelo capital) em medidas cada vez maiores. Para chegar a compreender este processo, deve-se insistir sobre o fato que, na relação com a máquina, o trabalhador desenvolve, de modo sempre mais autônomo, a instância cooperativa e, desse modo, organiza a energia produtiva. Assim, não podemos mais falar de “autonomia” do mesmo modo que se falava na fase da subsunção formal e/ou real do trabalho sob o capital.
Isso porque aqui há um grau de autonomia que não é somente de posição, mas ontológica – uma consistência autônoma, ainda que completamente submetida ao comando capitalista. O que significa estar em uma situação na qual uma iniciativa produtiva contínua – o tempo – e estendida – no espaço – são extraídas pelo capital? A relação entre processo laboral (nas mãos do operário) e processo capitalista de valorização estão hoje separados, o primeiro ligado à autonomia do trabalho vivo e o segundo ao puro comando. Essa mutação significa que o trabalho atingiu um grau de dignidade e força que recusa a forma de valorização que lhe é imposta. Assim, mesmo por dentro da imposição do comando, isso é capaz de desenvolver sua própria autonomia.
A grande diferença entre os processos laborativos estudados por Marx e os atuais consiste no fato de que a cooperação hoje não é mais imposta pelo patrão, mas produzida do interior pela força trabalho, o processo produtivo e as máquinas não são impostas do exterior pelo patrão. Podemos falar hoje de apropriação do capital fixo pelos trabalhadores e assim indicar, por exemplo, um processo, de construção do algoritmo de conhecimento disposta à valorização do trabalho em cada uma de suas articulações.
Se as coisas estão assim, é somente abstraindo-se cada vez mais dos processos laborativos que o comando capitalista consegue se exercitar. Não por acaso falamos de “exploração extrativa” da cooperação social, e não mais de exploração ligada às dimensões industriais e temporais da organização do trabalho.
Nesse tipo de organização do trabalho e da valorização há um papel complexo de “produção de subjetividade”. Por “produção de subjetividade” entende-se, por um lado, produção pela “subjetivação” e, por outro, tentativa insistente de reduzir essa última a “sujeito” comandado. A ambiguidade aqui é aquela que apresentam todas as diversas figuras do trabalho vivo em sua estruturação pós-industrial.
Em segundo lugar, o que é hoje o patrão? Diante do trabalho cognitivo, o patrão se apresenta como capital financeiro que extrai valor social. Dentro dessa “extração” se dá hoje uma progressiva redução da função patronal da figura empreendedora a uma figura puramente política. A verticalização do comando capitalista deve atravessar de maneira cada vez mais abstrata a relação entre cooperação e processos de subjetivação produtiva – consequentemente, nessa verticalização irá se exprimir um tipo de “governamentalização” do comando, uma tentativa cada vez mais complexa de controlar os mecanismos maquínicos/algorítmicos por meio dos quais o trabalho vivo construiu a cooperação. Nessa perspectiva, o capital financeiro se apresenta como “ditadura” – não ditadura fascista, mas abstração do comando e uniformização governamental na tentativa de fazer valer sua autoridade sobre o processo de abstração. Em suma, fazer coincidir abstração e extração.
Sobre a nova figura do comando capitalístico, convém distinguir dois aspectos. Já falamos do primeiro: o comando abstrato/extrativo e sua pretensão de recuperar todo o processo de valorização. Aqui se organiza o comando político. Mas, ao lado desse, há outro aspecto: o neoliberalismo é de fato, ao seu modo, constituinte. Ao invés de desenvolver uma atividade de governo que é apenas comando – essencialmente financeiro, mas corroborado por um máximo de força estatal – ele se desenvolve também em rede (com formas plurais de governamentalidade) e age como comando participativo sobre uma ampliada rede micropolítica predisposta a incluir necessidades e desejos. A constituição neoliberal não coleta simplesmente (e extrai valor do) trabalho vivo na sua expressão valorífica, mas tende também a organizar o consumo e os desejos e a torná-los, em sua expressão material, reprodutivos, cooperativos e funcionais à reprodução do capital. É a moeda que, no estado atual do capital financeiro, representa a mediação entre produção e consumo, entre necessidades e reprodução capitalista, que iguala, portanto, e coleta em uma mesma abstração o trabalho que a produz e o trabalho que a consome. Será possível atravessar esse conjunto complexo reapropriando-se do trabalho que produz e liberando o consumo de sua direção capitalista?
Quando começamos a falar de “trabalho imaterial”, fomos criticados, e não somente porque dizíamos (impropriamente) “imaterial” quando obviamente todo trabalho é material. Por essa imaterialidade visávamos os atos constitutivos de valores: conhecimento, linguagem, desejos. Hoje não se pode mais desmerecer o fato de que estamos em uma situação na qual o capital identificou totalmente o novo riquíssimo contexto no qual o trabalho vivo se exprime e colocou-o inteiramente sob seu comando. O capital agiu em duas direções. Por um lado, articulou seu comando à produção viva de linguagem; e por outro, opera por meio da funcionalização das necessidades e desejos ao comando capitalista. O capital (no neoliberalismo) quer que a força da subjetivação produtiva se reconheça como sujeito da relação de capital. Quer servidão voluntária. Daí a impotente mistificação produzida, frequentemente, em muitos homens honestos (mas incapazes de exercício crítico): defende-se que o capital é hoje capaz de tornar felizes os dominados. A nós interessa, em vez disso, pensar ainda que existir no capital é necessariamente resistir a ele.
O que é então a greve abstrata hoje? O que é uma greve que seja medida pela nova natureza do trabalho vivo ou pela constituição neoliberal da produção e da reprodução? O que é uma luta social que tenha capacidade de “fazer mal”, de se mostrar novamente com uma potência material e biopolítica eficaz? Para responder a essas questões, é conveniente insistir sobre dois pontos que não podemos separar, mas que pode ser útil distinguir. Antes de tudo, perguntar se e como o trabalho vivo pode hoje se rebelar e interromper o fluxo da valorização. A resposta a essa pergunta deve retomar inteiramente a tradição da luta operária: ruptura da relação de produção, abstenção, sabotagem, êxodo etc. Mas observando que quando o trabalho investiu na vida, quando se trabalha todo dia fora de qualquer horário, quando a capacidade produtiva de cada trabalhador é retomada dentro de redes de comando, como é possível reencontrar aquela independência de ação (que é exigida pelo “fazer greve”) seja no terreno espacial da cooperação ou no terreno temporal reduzido agora ao fluxo contínuo? Como é possível, por exemplo, ocupar e bloquear a metrópole (tornada produtiva) e/ou interromper o fluxo de produtividade das redes sociais, que não conhece pausa? Aqui a resposta só pode reconduzir àquela composição singular que hoje é representada pela íntima conexão algorítmica entre produção e comando – ou seja, ali onde os trabalhadores constroem relações significativas e produtivas cujo valor é extraído pelo capital. Nesse caso, a greve pode ter sucesso não só quando rompe o processo de valorização, mas quando recupera a independência, a consistência do trabalho vivo ao se tornar ato produtivo. Na greve, o trabalho vivo maquínico rompe o algoritmo para construir novas redes de significação. E pode fazê-lo não somente porque sem produção por parte do trabalho vivo, sem subjetivação, não tem algoritmo. Deve fazê-lo porque sem resistência não há, no capitalismo, nem salário nem promoção social, nem Welfare nem possível gozo da vida. A greve revela o futuro, rompendo com a miséria e a sujeição ao comando. Logo, greve como retomada da tradição operária, mas colocada sobre todo o terreno da vida – greve social. Essa é a figura da greve contra as técnicas capitalistas extrativas do valor de toda a sociedade.
Mas há um segundo ponto, todavia, talvez mais importante até de ser atacado: aquele onde os processos de reprodução da sociedade se cruzam com o capital financeiro, com a monetização do processo. É aqui claro que há de se romper e reconstruir o mecanismo que lega o consumo à dimensão monetária. O consumo é sempre uma coisa boa quando se sabe consumir em relação com as necessidades de reprodução da espécie – não tanto daquela natural, genericamente humana, mas daquela operária, produtiva, “pós-humana”. É esse tipo de consumo que deve ser tomado como momento de ruptura. Ora, esse é o terreno do Welfare (local de organização do domínio sobre serviços e consumo) que é percorrido como terreno de luta – de exercício de resistência e perspectiva alternativa. A greve abstrata se torna aqui greve materialista. Trata-se de recuperar para o trabalho vivo o comando sobre o consumo e de construir e/ou impor uma “produção do homem pelo homem” e não pelo lucro.
A greve abstrata, em nível de produção, impõe a recuperação da independência do trabalho vivo para romper o processo de valorização; em nível de reprodução, exige a construção e a imposição de uma nova sequência necessidades/desejos/consumo. É característica hoje a abundância das pesquisas que se empenham na tentativa (e logo exasperam a tensão) de construir espaços de independência laborativa dentro das redes produtivas e majoritariamente investidas pela capacidade capitalística de extração de valor. O renascimento do mutualismo e o crescimento da cooperação nas redes informáticas são somente as primeiras pistas de luta a serem aprofundadas. Sobre o terreno de ruptura da sequência desejos/consumo (e da sua monetização forçada) há forças difusas para criar moeda bit e para construir redes autônomas de comunicação e/ou redes independentes de consumo – tentativas parciais, mas significativas. Sua eficácia não poderá, contudo, tornar-se decisiva se essas iniciativas não se coligarem entre elas e atingirem ofensivamente o ponto crucial sobre o qual a produção capitalística transforma a subjetivação produtiva em produção autocrática dos sujeitos. É evidente que a democracia política é incompatível com a ditadura do capital financeiro. A greve abstrata assume esse pressuposto para indicar uma série de terrenos sobre os quais é necessário intervir a fim de construir uma potência independente que saiba propor e tornar possível um outro mundo democrático.
Para terminar. É claro que a greve contra a extração de valor e a greve que se move à altura da abstração capitalista pela exploração social não são a mesma coisa. No primeiro caso, de fato, a luta é direta pela apropriação do lucro (a sua distribuição pode favorecer os trabalhadores) e, no segundo caso, é derrubada dos modelos de reprodução da sociedade e da regra capitalista de cunhagem funcional e contextual da moeda – claro que hoje esses dois níveis de luta não são idênticos, mas extremamente ligados um ao outro. Um é horizontal e o outro é vertical. Um é luta pela emancipação do trabalho, outro pela liberação em relação ao trabalho. Mas, do ponto de vista das lutas, não se saberia distingui-los. Nem se pode, todavia, confundi-los e a razão consiste em tudo aquilo que foi dito até aqui: porque um luta e o outro constrói. Devem fazê-lo separadamente, devem fazê-lo junto. Aí está a tarefa a realizar. Até aqui foi a análise, depois vem a práxis. É então evidente que, se o neoliberalismo impõe a ditadura do capital financeiro, a luta pela liberação do e em relação ao trabalho, ou seja, a luta comunista impõe às coalizões de trabalhadores que se batam sobre o terreno horizontal contra a exploração extrativa de saber, mas se alçando também à produção de um projeto alternativo à gestão capitalista – da extração de valor, mas, sobretudo, da medida – da moeda. É aqui que se combate a ditadura. Os companheiros do Syriza hoje, aqueles do Podemos amanhã, é para aqui que eles trouxeram a luta: para o cruzamento entre emancipação do trabalho e liberação em relação ao trabalho. Se conseguirá na Itália construir uma coalizão de trabalhadores tão potente?